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Poupança das famílias em máximos é bom para a economia mas "há uma roda dentada": o dinheiro não está a chegar às empresas

Taxa de poupança das famílias em Portugal fechou 2024 no valor mais alto desde 2003. É uma boa notícia para a economia, porque pode potenciar o investimento. O problema é que o dinheiro está parado em depósitos bancários e não está a chegar às empresas. Desenvolver o mercado de capitais é essencial, apontam os economistas ouvidos pelo Expresso Há mais de duas décadas (excetuando o período da crise pandémica) que a taxa de poupança das famílias em Portugal não atingia um valor tão elevado, fechando 2024 nos 12,2% do rendimento disponível. É uma boa notícia para a economia portuguesa, já que o aumento da poupança pode potenciar o investimento. O problema é a forte aversão ao risco dos aforradores portuguesas e o fraco desenvolvimento do mercado de capitais. A poupança tem sido colocada, sobretudo, em depósitos bancários. Assim, só o canal do crédito da banca às empresas pode fazer chegar o dinheiro à economia real, o que não está a acontecer. Entre maio de 2023 e fevereiro de 2025, o stock de depósitos das famílias aumentou 19,1 mil milhões de euros mas, no mesmo período, o stock de empréstimos bancários às empresas diminuiu 1,27 mil milhões. Os economistas consideram essencial desenvolver o mercado de capitais. Com exceção do período da crise pandémica – onde os confinamentos obrigaram as famílias a poupança forçada, e que foi exponenciada pelo clima de grande incerteza – Portugal debate-se há largos anos com um problema de baixa poupança dos particulares. O que, por sua vez, é um dos fatores limitativos do investimento no país, logo, de um maior potencial de crescimento da economia. Mas a situação mudou nos últimos dois anos, com a taxa de poupança das famílias numa trajetória clara de subida. Depois de cair rapidamente após a pandemia de covid-19, atingindo um mínimo de 6,5% do rendimento disponível no primeiro trimestre de 2023 (considerando o ano terminado nesse trimestre, que é a forma como o INE analisa a evolução deste indicador, para “alisar” as oscilações de trimestre para trimestre) a taxa de poupança das famílias começou a subir no segundo trimestre de 2023, e não parou de aumentar desde então. Poupança das famílias no nível mais elevado desde 2003 (com exceção da pandemia) Taxa de poupança das famílias e das instituições sem fim lucrativo ao serviço das famílias, em percentagem do rendimento disponível Desta forma, a taxa de poupança das famílias em Portugal (inclui também as instituições sem fim lucrativo ao serviço das famílias) passou dos referidos 6,5% no final do primeiro trimestre de 2023, para 12,2% no fecho de 2024. Se excluirmos o período da pandemia de covid-19 – e correspondente poupança “forçada” – é preciso recuarmos até 2003 para encontrar um valor mais elevado, indica a análise do Expresso à série de dados do INE. Rendimento das famílias sobe A que se deveu este aumento da taxa de poupança das famílias? O INE destaca o “aumento do rendimento disponível bruto”, que acelerou em relação ao trimestre anterior, e que foi “superior ao crescimento do consumo privado”. No ano acabado no quarto trimestre de 2024, “as remunerações e o excedente bruto de exploração contribuíram em 1,5 pontos percentuais e 0,6 pontos percentuais, respetivamente”, para o aumento de 3,1% do rendimento disponível bruto, salienta o INE numa nota de análise que acompanhou a publicação dos dados. “É importante ainda referir o contributo positivo dos impostos para o crescimento do rendimento disponível bruto das famílias”, destaca o INE, contabilizando um impacto de 0,6 pontos percentuais. Um contributo que “reflete a redução do IRS pago devido à aplicação de novas tabelas de retenção na fonte”, explica a autoridade estatística nacional. Susana Peralta, economista e professora da Nova SBE, também aponta baterias ao rendimento disponível: “O principal fator que explica o aumento da poupança das famílias é o aumento do seu rendimento disponível, devido a uma trajetória positiva do emprego e do salário médio. E que se sentiu sobretudo em 2023 e 2024, com a recuperação do poder de compra perdido no surto inflacionista”. E vinca: “As famílias, quando têm mais dinheiro, poupam mais”. Mas atenção: para Susana Peralta, esta evolução não pode fazer esquecer que “há muitas famílias em Portugal que não conseguem poupar ou têm mesmo poupança negativa”. Ainda para mais, “os dados do INE não nos dizem nada sobre isto porque são dados agregados das contas nacionais”, salienta. Para a professora da Nova SBE, o aumento da taxa de poupança “também resultou em parte de um efeito precaucionário das famílias, face a uma situação de grande incerteza a nível internacional”. Já o efeito preço, ou seja, o aumento das taxas de retorno do aforro, nomeadamente nos depósitos bancários, “não penso que tenha tido um grande efeito no aumento da poupança das famílias”, considera Susana Peralta. Já o Banco de Portugal (BdP), no Boletim Económico de março de 2025, salienta que “a taxa de poupança das famílias aumentou nos últimos dois anos, com taxas de juro elevadas que incentivam a poupar mais e a consumir menos”. Além disso, “A incerteza prevalecente e os choques recentes terão sido também um fator relevante, levando as famílias a aumentarem as suas poupanças por precaução”, acrescenta. O BdP nota ainda que “a subida terá sido reforçada em 2024 pela composição do aumento do rendimento disponível, que foi superior para alguns grupos de famílias ou tipo de rendimentos para os quais existe evidência de uma maior propensão a poupar”. Miguel St. Aubyn, economista e professor do ISEG, lembra que “a poupança das famílias depende de múltiplos fatores”. Assim, “o aumento do rendimento disponível pode explicar uma parte desta evolução”, já que “os aumentos de rendimento tendem, no curto prazo, a ter impacto mais do proporcional na poupança”, afirma. Outro factor explicativo, para Miguel St. Aubyn, “poderá ser o aumento das taxas de concessão de crédito”, já que “o aumento do serviço da dívida obriga, por si só, a um aumento da poupança dos particulares”. Já quanto ao retorno para os aforradores, “infelizmente, dificilmente se poderá considerar que a poupança tenha sido incentivada por uma remuneração acrescida, pois as taxas de juro passivas praticadas pelo sector bancário pouco evoluíram”. “Infelizmente, dificilmente se poderá considerar que a poupança tenha sido incentivada por uma remuneração acrescida, pois as taxas de juro passivas praticadas pelo sector bancário pouco evoluíram”, diz Miguel St. Aubyn Poupança deve manter-se elevada O que vai acontecer à taxa de poupança nos próximos trimestres: manter-se elevada, ou começar a cair, como aconteceu no pós-pandemia? O BdP considera que a resposta certa é a primeira, ou seja, que a taxa de poupança das famílias em Portugal se vai manter perto dos 12%. “O inquérito aos consumidores da Comissão Europeia mostra que as intenções de poupança nos próximos 12 meses mantêm uma tendência ascendente – generalizada a todos os quartis de rendimento, mas mais acentuada nos mais elevados – suportando a projeção de manutenção da taxa de poupança em valores elevados em 2025-27 (11,7% em média)”, lê-se no Boletim Económico de março. Mais ainda, a situação de grande incerteza internacional pode levar os agentes económicos “a aumentar a poupança por motivos de precaução”. Susana Peralta aponta no mesmo sentido: “Mantendo-se a trajetória relativamente positiva em termos de produto interno bruto (PIB), emprego e salários – e isso não é garantido dada a situação de grande incerteza internacional -, o mais provável é a taxa de poupança das famílias manter-se elevada”. Até porque “há alguma inércia associada a estes movimentos de poupar ou não poupar. Quando as famílias começam a poupar mais, não deixam de o fazer de um momento para o outro”. António Ribeiro, analista financeiro da DECO/Proteste, afina pelo mesmo diapasão: “Nada indica, para já, que a taxa de poupança das famílias vá cair. Deverá estabilizar em torno dos 12%”. Contudo, deixa um alerta: “São previsões, ainda por cima feitas num contexto em que o cenário internacional e nacional é instável”. Miguel St. Aubyn é cauteloso: “De entre os fatores que podem levar ao aumento da taxa de poupança surge a crescente incerteza e perspetivas mais pessimistas resultantes da guerra comercial declarada pela Administração Trump ao resto do mundo”. Em sentido inverso, “um desempenho económico abaixo do esperado poderá levar a uma diminuição da taxa de poupança”. Depósitos bancários absorvem maioria “A poupança tem um papel de amortecedor de perturbações, positivas e negativas. Deste ponto de vista, a sua flutuação é algo de natural e, em certa aceção, desejável”, aponta Miguel St. Aubyn. E explica: “Uma taxa de poupança estrutural significativa permite o adequado financiamento do investimento”. Para o economista, “uma taxa de poupança patologicamente alta ou excessivamente baixa seria contraproducente”. Mas, “este não parece ser um risco atual”, frisa. Portugal é um país onde, “tradicionalmente, se subpoupa, e não um país que poupa demais. Portanto, um aumento da poupança das famílias é uma boa notícia” para a economia portuguesa, vinca, por sua vez, Susana Peralta. “O problema – e que não é só português, também é europeu – é que muitas famílias que poupam mais, mas poupam mal, já que aplicam todo o aforro (ou quase todo) em depósitos bancários”, salienta a economista. António Ribeiro aponta no mesmo sentido: “A taxa de poupança tem aumentado e nota-se um aumento do montante aplicado pelas famílias em depósitos bancários, nomeadamente depósitos a prazo. Essa é a principal aplicação do aforro os portugueses, que são muito avessos ao risco, e quase só aplicam poupança em produtos de capital garantido”. Os dados do Banco de Portugal confirmam. Depois de um recuo marcado nos primeiros cinco meses de 2023 – quando saíram dos bancos perto de 9 mil milhões de euros de depósitos, em grande medida desviados para certificados de aforro cuja taxa de juro era, na altura, e em regra, muito mais elevada – o stock de depósitos bancários dos particulares em Portugal começou uma trajetória de subida em junho de 2023, que se mantém, apesar de algumas oscilações. Depósitos bancários das famílias estão em máximos históricos Stock no final de cada mês dos depósitos bancários de particulares, em mil milhões de euros Em fevereiro deste ano (último valor disponível), o total de depósitos bancários das famílias atingiu 192,8 mil milhões de euros, o valor mais elevado da série, que começa em 1979. São mais 19,1 mil milhões de euros do que em maio de 2023, o que traduz um aumento de 11%. O problema é que os depósitos bancários “rendem muito pouco, muitas vezes abaixo da inflação”, levando a uma perda de rendimento em termos reais, ou seja, tendo em conta o impacto da inflação, salienta Susa Peralta. Tendo em conta a última previsão do BdP, a taxa de inflação média em Portugal deverá ficar em 2025 nos 2,3%, “e o rendimento dos depósitos e a taxa de juro base dos certificados de aforro estão a diminuir, com a remuneração líquida destas aplicações já abaixo da inflação prevista”, nota António Ribeiro. Ou seja, “tudo indica que este será um ano de retornos reais negativos para os aforradores que aplicarem a sua poupança nestes produtos, já que irão perder dinheiro em termos reais”, vinca o especialista da DECO/Proteste. “Isto exige muita atenção das famílias na aplicação da sua poupança. Devem procurar aplicações alternativas, sobretudo para o aforro de médio e longo prazos”, defende António Ribeiro. Poupança não chega à economia real Como resultado desta prevalência da aplicação do aforro em depósitos bancários, “a roda dentada que leva a poupança das famílias até à economia real, possibilitando maiores níveis de investimento, continua muito perra”, destaca Susana Peralta, salientando mesmo que “parte dessa poupança continua a não chegar à economia real”. Um problema que se “torna mais visível, quando há mais poupança”, vinca a professora da Nova SBE. Esta situação “tem a ver também com um mercado de capitais pouco desenvolvido e pouco oleado”, considera Susana Peralta, defendendo que é preciso “dinamizar mais os mercados de capitais, em Portugal e na Europa, para fazer chegar mais a poupança das famílias à economia real”, potenciando o aumento do investimento e, logo, o crescimento económico. “É muito importante”, enfatiza. “A roda dentada que leva a poupança das famílias até à economia real, possibilitando maiores níveis de investimento, continua muito perra”, destaca Susana Peralta António Ribeiro aponta no mesmo sentido: “A poupança é uma forma de investimento na economia. O problema é quando essa poupança só é aplicada em depósitos, e não é também aplicada nas empresas, nomeadamente através dos mercados financeiros, para transferir fundos para a economia real, dinamizando a economia. Esse é o problema em Portugal. A poupança das famílias é quase toda canalizada para depósitos e, assim, só beneficia a banca”. Porque é que isto acontece? Para António Ribeiro “a razão prende-se, em grande medida, com a iliteracia financeira em Portugal”. E defende: “É muito importante aumentar o grau dessa literacia financeira, porque para aforro de médio e longo prazos, os depósitos não são os produtos mais adequados. Aconselhamos, sim, o mercado de ações e fundos de investimento, onde o risco é maior, mas o potencial de retorno é muito mais elevado”. “Esse é o problema em Portugal. A poupança das famílias é quase toda canalizada para depósitos e, assim, só beneficia a banca”, lamenta António Ribeiro Depósitos aumentam, crédito às empresas diminui Sem o mercado de capitais a funcionar – ou a funcionar mal – para fazer chegar o aforro das famílias à economia real, dinamizando o investimento, resta o canal dos empréstimos da banca às empresas. O problema é que este canal também está muito emperrado e com muita areia na engrenagem. Os dados do BdP não deixam margem para dúvidas. No final de fevereiro de 2025 (último valor disponível), o stock de empréstimos bancários às sociedades não financeiras totalizava 72,6 mil milhões de euros. Crédito bancário às empresas muito longe do pico de 2010 Stock dos empréstimos bancários às sociedades não financeiras, em mil milhões de euros É um valor muito longe do pico de 118,2 mil milhões de euros, atingido em novembro de 2009. Mais ainda, nos últimos dois anos, em que a taxa de poupança das famílias esteve a aumentar, levando o total de depósitos bancários de particulares a subir 19,1 mil milhões de euros entre maio de 2023 e fevereiro de 2025, o total de crédito bancário às empresas não só não aumentou, como até recuou. Entre maio de 2023 e fevereiro de 2025, o stock dos empréstimos bancários às sociedades não financeiras diminuiu diminuiu 1,7%. São menos 1,27 mil milhões de euros. Em suma, o aforro das famílias não está a chegar à economia real, limitando o potencial de aumento de investimento das empresas que a subida da poupança poderia propiciar. Um problema que continua por resolver em Portugal. Redução dos reembolsos do IRS com impacto limitado na poupança A campanha de entrega das declarações de IRS de 2025, relativa aos rendimentos auferidos em 2024, tem sido marcado pela polémica, já que muitas famílias viram reduzir de forma marcada o seu reembolso face a anos anteriores. Algumas famílias passaram mesmo a ter de pagar IRS, feito o acerto, em vez de receberem reembolso como era habitual até aqui. O BdP considera que “o consumo privado deverá ser condicionado no segundo trimestre pelo impacto da redução prevista nos reembolsos do IRS, resultante de menores retenções na fonte ocorridas em setembro e outubro e 2024”. E quanto à poupança? Poderá ter um impacto negativo? A acontecer será pontual e limitado, consideram os especialistas ouvidos pelo Expresso. “As pessoas podem já não se lembrar, mas já receberam este dinheiro do reembolso antecipadamente, com a redução das taxas de retenção na fonte. Houve uma antecipação do reembolso, sobretudo no outono de 2024 com o acerto das taxas de retenção na fonte”, lembra António Ribeiro, analista financeiro da CEDO/Proteste. Para António Ribeiro, as famílias “deviam ter aproveitado para fazer poupança nessa altura” e, “provavelmente, muitas até o fizeram”. Tudo somado, “pode haver algum efeito de redução pontual da taxa de poupança das famílias neste segundo trimestre de 2025. Mas, se existir, será apenas pontual e não afetará a tendência de evolução da poupança das famílias num horizonte mais alargado”, argumenta. Susana Peralta, economista e professora da Nova SBE, aponta no mesmo sentido: “É possível que tenha um efeito, mas diminuto”. “Em princípio, os reembolsos são neutros”, mas, na prática, “sabemos que os efeitos comportamentais – as pessoas acham mesmo que são mais ricas quando diminui a retenção e menos ricas quando os reembolsos diminuem ou são inexistentes – são importantes para a poupança”. Mas, “não conseguimos fazer previsões”. Por isso, “seria cuidadosa com extrapolações”, vinca.. “Tratando-se de uma quebra inesperada no rendimento disponível, esperaria uma penalização tanto do consumo, como da poupança” neste segundo trimestre de 2025, aponta, por sua vez, Miguel St. Aubyn. E remata: “Será de esperar que as famílias diminuam proporcionalmente mais a sua poupança do que o seu consumo, ou seja, que a poupança cumpra o seu papel de amortecedor de choques”. Sónia M. Lourenço Jornalista Sónia M. Lourenço …