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Carreira e família. Teletrabalho pode pôr em causa avanços na igualdade de género

O teletrabalho não está a trazer um maior equilíbrio na divisão das tarefas domésticas. Há quem tema que regresso da mulher a casa agrave as desigualdades. Mas muitas defendem o modelo. Há um antes e um depois da pandemia para Daniela Lista, 36 anos, assistente num call center. Em 2021, quando o país entrou num novo confinamento e as escolas fecharam, passou um mau bocado. Em teletrabalho “forçado”, com os dois filhos pequenos em casa e o companheiro a trabalhar fora, vivia num permanente estado de stress: não conseguia dar resposta às dezenas de chamadas que lhe caíam no telefone, nem a atenção devida às crianças. Passados três anos, continua em teletrabalho, agora por escolha própria e porque lhe permite ter maior disponibilidade para acompanhar Francisco, de seis anos, e Inês, de sete. “A partir do momento em que as escolas começaram a funcionar normalmente, a nossa vida ficou mais fácil”, conta. De tal forma que, quando foram levantadas todas as restrições relacionadas com a pandemia de covid-19, Daniela decidiu manter-se em teletrabalho, aproveitando a possibilidade prevista na lei para quem tem filhos até oito anos. “Neste momento, para mim é vantajoso, porque consigo acompanhar os meus filhos mais de perto”, frisa, sublinhando que em Elvas, cidade onde mora, não há muita oferta de actividades de tempos livres públicas e, assim, acaba também por poupar. Daniela faz parte das 886,6 mil pessoas que estavam em teletrabalho no final de 2023, metade das quais eram mulheres e tinham qualificações superiores. Mas se os números mostram que o teletrabalho é uma realidade que veio para ficar, no caso das mulheres esta pode ser uma faca de dois gumes. É que, se, por um lado, permite um maior equilíbrio entre a vida profissional e familiar e potenciar a sua participação no mercado de trabalho, por outro, pode tirar-lhes visibilidade no espaço público, reforçar o seu papel de principal cuidadora e agravar as diferenças de género que persistem em Portugal. Sara Falcão Casaca, professora no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), não tem dúvidas de que o teletrabalho “veio agravar a situação de desigualdade das mulheres”. “O que sabemos, por estudos recentes, é que as motivações para o teletrabalho são diferentes. Enquanto as mulheres optam por teletrabalho quando têm crianças pequenas ou outros dependentes a cargo, até por questões de conciliação, os homens optam por razões profissionais e por considerarem que vão ser mais produtivos e mais eficientes. Portanto, continuamos a ter este desequilíbrio”, sublinha em conversa com o PÚBLICO. Além disso, acrescenta, “as mulheres quando estão em casa, estão muito mais sujeitas à simultaneidade de tarefas, ora profissionais, ora domésticas e do cuidado”. Foto Ana Isabel Guilherme Rui Gaudencio Reforço de desigualdades pré-existentes Um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), de Fevereiro de 2023, dá conta de sinais contraditórios quanto ao impacto do teletrabalho na vida das mulheres. Citando estudos feitos antes da pandemia, sugere-se que o teletrabalho não aumenta as desigualdades de género no equilíbrio entre vida profissional e pessoal, reflectindo sobretudo as desigualdades já existentes. Tendencialmente, refere a OCDE, o tempo de lazer aumenta para todos os teletrabalhadores, mas o que os homens e as mulheres fazem com ele é bem diferente. Enquanto eles usam esse tempo para actividades de desporto ou para investirem na carreira, as mulheres dedicam parte desse tempo às tarefas domésticas. Não significa que façam mais do que já faziam , o que acontece é que essas tarefas que estavam reservadas para o fim-de-semana passaram a ser feitas durante a semana. Foto Sara Falcão Casaca não tem dúvidas de que o teletrabalho “veio agravar a situação de desigualdade das mulheres” Nuno Ferreira Santos Sandra Ribeiro, presidente da presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), tem uma percepção semelhante: “Aparentemente, a situação das mulheres não ficou pior com o teletrabalho, mas também não está a trazer um maior equilíbrio na divisão das tarefas.” “Aquilo que está a acontecer é uma maior capacidade de gerir tudo aquilo que já geriam antes. Há uma percepção de maior capacidade de conciliar o tempo de trabalho com o cuidado dos filhos e da casa, que ainda sobrecai muito sobre as mulheres”, exemplifica. Ana Isabel Guilherme, engenheira geógrafa de 51 anos, sabe bem o que isso é. Está em teletrabalho desde a pandemia. A sala de casa, iluminada por duas grandes janelas, passou a ser o seu escritório. Nos primeiros meses teve dificuldade em adaptar-se. Com o passar do tempo criou estratégias para combater o isolamento e a falta de convívio com os colegas. Vai correr à hora do almoço, “beber um cafezinho” com um livro e às vezes na companhia de uma amiga ou fazer uma caminhada no jardim mesmo ao lado de casa. Passou a frequentar um ginásio e, quando vai ao escritório, tenta almoçar com os colegas. Está separada, mas sempre lhe coube assegurar a confecção das refeições, a organização da casa e o cuidado das duas filhas, que agora têm 12 e 16 anos, enquanto o companheiro ocupava o seu tempo livre com as idas ao ginásio ou outras actividades de lazer. “Não vejo que com o teletrabalho fique mais sobrecarregada”, assegura, mas também nota que há uma pressão social sobre as mulheres “para conciliarem o trabalho, as coisas da casa e a família” que não existe para os homens. Passada a pandemia, a empresa onde trabalha há 24 anos adoptou o modelo híbrido e há uma grande flexibilidade e autonomia. “É o melhor de dois mundos”, resume Ana Isabel, que já não se imagina a ir todos os dias de Queijas para a Praça de Espanha, onde se situam os escritórios da empresa. Uma das vantagens deste modelo é o apoio que pode dar às filhas: “Se estivesse a fazer trabalho presencial todos os dias, não conseguiria.” Foto Daniela Lista Ricardo Lopes Risco de retrocessos Quando se confronta com o peso que o teletrabalho ganhou desde a pandemia, uma das principais preocupações de Fátima Messias, dirigente da CGTP, é o impacto deste regime naquele que é o papel da mulher na sociedade e no seu processo de emancipação. “Os efeitos do teletrabalho nas mulheres não são neutros e podem pôr em risco um conjunto de avanços e o demorado processo de emancipação, reforçando o papel da mulher enquanto principal cuidadora das crianças, dos idosos e das tarefas domésticas e afastá-la da vida e do espaço público”, alerta. “Não quer dizer que seja imediato ou que aconteça sempre, mas o regresso da mulher a casa por motivos de trabalho tem o risco de que volte a ser atribuído à mulher um papel de cuidadora da família e pode haver um retrocesso. Aliás, nos tempos que vivemos os retrocessos instalam-se muito rapidamente”, sublinha. As mulheres, faz notar Fátima Messias, têm de estar presentes na rua, na vida social e isso perde-se mais para as mulheres do que para os homens. “É essa vida em sociedade que é perigoso as mulheres voltarem a perder”, alerta, lembrando que o maior isolamento decorrente do teletrabalho “dificulta a socialização e vulnerabiliza a acção colectiva” Foto “Os efeitos do teletrabalho nas mulheres não são neutros e podem pôr em risco um conjunto de avanços e o demorado processo de emancipação, reforçando o papel da mulher enquanto principal cuidadora das crianças, dos idosos e das tarefas domésticas e afastá-la da vida e do espaço público”, alerta Fátima Messias Miguel Manso Também Sara Falcão Casaca receia que com o teletrabalho venham retrocessos. O teletrabalho, frisa, “tem aspectos muito positivos”, mas ao mesmo tempo “há o risco de continuarmos a associar às mulheres o papel de cuidadoras com tudo o que isso implica em termos de custos profissionais, de carreira e até remuneratórios”. Esses riscos psicossociais requerem uma reflexão, sugere. É unânime entre os especialistas que o trabalho híbrido é o que garante uma melhor conciliação entre a vida profissional e familiar e um maior equilíbrio de género. Maria José Chambel, professora de Psicologia do Trabalho e das Organizações na Universidade de Lisboa, realça que é preciso distinguir entre dois momentos da história recente. “Durante a pandemia os nossos estudos, tal como outros ao nível europeu, mostravam que a desigualdade [entre homens e mulheres] se tinha agravado. Foi uma situação transitória pior para as mulheres, porque são elas que ainda ficam muito encarregadas das tarefas domésticas e do cuidado dos filhos”, sublinha. Passada essa fase e com o trabalho híbrido a ganhar cada vez mais expressão, Maria José Chambel dá conta de “uma grande unanimidade” quanto a esta modalidade, “porque ajuda na conciliação, na organização e, até economicamente, as famílias”. Aumentar Impacto na carreira e menos visibilidade Sandra Ribeiro, presidente da CIG, reconhece que numa fase inicial houve receios de que o trabalho à distância pudesse trazer um maior desequilíbrio para as mulheres no mercado de trabalho. “Creio que isso não aconteceu”, destaca, acrescentando que isso se deve ao facto de muitas empresas terem adoptado regimes híbridos. “Parece-nos que, francamente, para as mulheres está a ser positivo para a sua progressão e manutenção no mercado de trabalho”, conclui. Mas será que esta escolha pelo teletrabalho ou por regimes híbridos não tem impacto no desenvolvimento da carreira destas mulheres? A OCDE diz que também aqui as respostas não são unânimes. Um estudo levado a cabo no Reino Unido antes da pandemia apresentava evidências de que o teletrabalho ajuda as mulheres a permanecerem empregadas após o nascimento do primeiro filho. No entanto, se o teletrabalho é utilizado principalmente pelas mulheres para fazer face à partilha desigual das tarefas domésticas e das responsabilidades do cuidados dos filhos ou dos mais velhos, então “corre-se o risco de penalizar ainda mais a progressão na carreira das mulheres, diminuindo a sua visibilidade para os gestores que ainda utilizam o tempo presencial, em vez dos resultados como elemento-chave da avaliação de desempenho”. Ana Isabel não sente que o facto de estar a trabalhar de forma remota a penalize. Pelo contrário, tem vindo a assumir mais responsabilidades dentro da empresa e sente que é mais produtiva. No caso de Daniela, não é o trabalho remoto que representa um travão à sua carreira, mas o facto de ter filhos ainda pequenos, o que acaba por condicionar a sua decisão de concorrer a novas posições dentro da empresa, sobretudo se isso implicar mudanças de horário. “Sinto que ainda não é altura e que preciso de mais um ou dois anos até os meus filhos terem mais autonomia”, diz. Fotogaleria Ana Isabel Guilherme, 51 anos, é engenheira geógrafa e trabalha em regime híbrido Rui Gaudêncio Fotogaleria Daniela, 36, anos, é operadora num “call center” e estar em teletrabalho permite-lhe acompanhar os filhos de seis e sete anoss Ricardo Lopes