Das mais de 200 queixas de assédio feitas no ensino superior, 18% resultaram em sanção
14-12-2024
É “relativamente baixo” o número de instituições que contam com canais de denúncia específicos para a participação de casos de assédio moral e/ou sexual. Ministro diz que há ainda muito para melhorar.
É uma realidade “oculta” em muitos sectores da sociedade, mas começa a destapar-se no ensino superior: entre 2019 e 2023, as instituições de ensino superior (IES) receberam 218 queixas de assédio moral, sexual e situações que incluem cumulativamente a prática destes dois tipos de assédio. Menos de um quinto (18%) resultou em sanção para o agressor. Ainda que tenha havido um maior número de denúncias nos últimos dois anos, isso “pode não significar necessariamente um maior número de casos”. “O que pode significar é que hoje as pessoas têm mais informação e têm os canais ao seu dispor. Mas há também a percepção de que ainda há muito por desocultar neste sentido”, notou a professora catedrática do Instituto Superior de Economia e Gestão, da Universidade de Lisboa, Sara Falcão Casaca, que coordenou este estudo.
Estas conclusões resultam do trabalho da Comissão de Acompanhamento da Implementação das Estratégias de Prevenção da Prática de Assédio nas Instituições de Ensino Superior, que foi nomeada pelos ministérios da Educação, do Trabalho e da Juventude e Modernização em Junho passado. Integra representantes de várias entidades, desde os ministérios a representantes dos alunos, reitores das universidades e presidentes dos institutos superiores politécnicos, assim como da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.
Olhando mais finamente para os dados que foram apresentados esta sexta-feira, as universidades e institutos politécnicos, públicos e privados, receberam, no período em análise, 151 denúncias que correspondem a casos de assédio moral, 41 a casos de assédio sexual e 26 a casos que conjugaram as duas práticas. Deram origem à abertura de 94 processos disciplinares neste período, que resultaram em 39 sanções disciplinares.
O trabalho da comissão incidiu ainda sobre unidades de investigação de gestão autónoma, onde foram recebidas 12 denúncias de assédio moral e uma de assédio sexual, que resultaram em três processos e em três sanções disciplinares.
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Universidades sem canais de denúncia próprios
Estes dados resultaram da aplicação de um inquérito junto das instituições de ensino superior, públicas e privadas, e de unidades de investigação, ao qual responderam 74 das 97 instituições (72,1% das 61 do sistema universitário e 83,3% das 36 instituições do sistema politécnico) e ainda 51,9% das 52 unidades de investigação.
Cerca de um terço das instituições e 15% das unidades de investigação que responderam ao inquérito declararam ter recebido denúncias de assédio moral. Já em relação às denúncias de assédio sexual, foram recebidas queixas em 19% e apenas uma numa unidade de investigação. Já 15% das universidades e politécnicos reportaram ter recebido denúncias de práticas simultâneas de assédio moral e assédio sexual.
A comissão inquiriu as instituições sobre as práticas e estratégias que seguem para prevenir o assédio. Hoje, “praticamente a totalidade” das IES (90,5%) tem códigos de conduta e de boas práticas para a prevenção do assédio e canais de denúncia, ainda que num terço das instituições este código ainda não abranja toda a comunidade académica. É também “relativamente baixo” o número de IES que contam com canais de denúncia específicos para a participação de casos de assédio moral e/ou sexual, o que, como realçou a coordenadora da comissão, pode gerar desconfiança nas vítimas e dissuadi-las da denúncia.
“A maioria das organizações tem canais genéricos, que funcionam para denúncias desde branqueamento de capitais e irregularidades da contratação pública, até denúncias de assédio moral ou sexual. Nós consideramos que essas denúncias, tal como todas as denúncias que tenham a ver com violação de direitos humanos, do princípio da igualdade de género ou de outras discriminações, devem ter um canal de denúncia específico”, notou Sara Falcão Casaca.
Falta de apoio psicológico
Uma das falhas apontadas pela comissão é a forma como as instituições dão seguimento às denúncias recebidas: em cerca de 75% das IES e 66% das unidades de investigação o canal de denúncia está associado a uma comissão interna, o que pode condicionar a avaliação das participações.
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“Em casos tão sensíveis, a tramitação tem de ser diferente”, notou Sara Falcão Casaca, ressalvando a necessidade de garantir algum distanciamento – o que será apenas possível com uma comissão externa – e a segurança das vítimas dentro do sistema, nomeadamente das que pretendem manter o seu anonimato. São também “poucas as instituições que prestam informação à comunidade académica e científica sobre como actuar perante uma conduta de assédio”.
Em Maio de 2023, o PÚBLICO dava nota de que um quarto das instituições de ensino superior ainda não tinha canais de denúncia destinados a receber queixas de assédio moral ou sexual. E que a maioria só o tinha feito, depois de, em 2022, a então ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato, ter feito essa recomendação, na sequência dos casos de assédio vindos a público na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).
“Houve, nos últimos anos, um reforço dos mecanismos de prevenção e de combate ao assédio. Podemos dizer que, em geral, as instituições procuraram cumprir essas recomendações. Não obstante este reforço, há aqui margem para melhoria, como promover mais acções de sensibilização. Os canais, os códigos foram criados, mas a informação não chegou a toda a comunidade académica e às partes interessadas que se relacionam com essa comunidade”, notou a coordenadora da comissão.
Outra das falhas apontadas neste relatório é que mais de um quarto das universidades e politécnicos não tem respostas de apoio psicológico para vítimas de assédio e violência sexual. No caso das instituições de investigação, mais de metade (56%) não tem esse tipo de resposta.
Mais queixas nos últimos dois anos
Grande parte destas denúncias surgiu em 2022 e no ano seguinte. Coincide com a altura em que foram divulgados os dados sobre um canal de denúncias, que foi aberto pela FDUL que recebeu 50 queixas de assédio e discriminação em 11 dias e desencadeou a participação de dezenas de denúncias noutras instituições. E também com as primeiras recomendações que a tutela fez sobre como prevenir e combater o assédio moral e sexual em contexto académico.
O relatório não detalha os dados por instituição de ensino. No entanto, em Outubro passado, o PÚBLICO dava nota de que só a Universidade de Lisboa tinha recebido 50 queixas de assédio moral e sexual entre 2018 e 2023. Dessas, 20 resultaram em processos disciplinares e apenas oito resultaram em sanções.
Não se sabe também que tipo de sanções foram aplicadas aos agressores. Segundo Sara Falcão Casaca, em apenas seis meses a comissão não teve como recolher esses dados de forma tão detalhada, mas realça a necessidade de continuar a recolher informação sobre este fenómeno. “Quanto mais investirmos em informação, quanto mais eficientes e confiáveis forem os mecanismos ao dispor da comunidade académica, mais denúncias teremos. E esse é um processo absolutamente necessário. Não é possível termos estratégias de prevenção e combate eficazes se não conhecermos a expressão do fenómeno.”
Uma das sugestões deixadas pela professora de Economia da Nova SBE Susana Peralta, durante o painel de discussão dos resultados, foi precisamente que seja feito um inquérito a toda a comunidade académica – que inclua pessoal docente, estudantes e trabalhadores das IES e dos institutos de investigação em Portugal – para conhecer melhor a dimensão do problema.
Em declarações aos jornalistas, o ministro da Educação reconheceu que há hoje “uma muito maior atenção ao problema de assédio moral e sexual nas instituições de ensino superior”, ainda que considere também haver “um espaço ainda muito grande para melhoria”. “Há uma cultura que tem de ser criada, precisamos desses mecanismos”, disse.
Contudo, o relatório nota que há instituições que dizem não dispor de recursos humanos, técnicos e financeiros que permitam “dar a resposta mais adequada às necessidades existentes e à efectivação da estratégia de prevenção e combate ao assédio”.
Também a ministra da Juventude e da Modernização, Margarida Balseiro Lopes, sublinhou a importância de “desocultar estes casos” e de as vítimas conhecerem o processo de tramitação das suas denúncias e as consequências que delas surgem. “Se não houver esta percepção de que alguma coisa acontece, as pessoas não vão denunciar quando forem vítimas.”
Algumas das 23 recomendações deixadas pela comissão
Ter uma estratégia de prevenção do assédio numa estratégia articulada e de salvaguarda dos direitos humanos, compreendendo a igualdade de género e adoptar Planos para a Igualdade, a Não Discriminação e a Inclusão.
Realizar regularmente diagnósticos internos, através da aplicação de inquéritos por questionário junto da comunidade académica/científica, garantindo o anonimato de todas as pessoas participantes.
Disponibilizar um guião orientador para a elaboração de um código de conduta e de boas práticas especificamente aplicável às IES e às instituições de investigação, assim como de um guião orientador para a elaboração de protocolos de actuação em caso de assédio sexual e/ou moral (incluindo assédio online).
Clarificar os conceitos de assédio sexual, de assédio moral e de assédio online ou virtual.
Reforçar as acções de sensibilização através de panfletos, cartazes em locais públicos, podcasts sobre o que é assédio, promovendo também a disseminação de boas práticas.
Reforçar as respostas de acompanhamento psicológico a vítimas de assédio
Apostar numa arquitectura preventiva, evitando gabinetes e salas sem janelas para o exterior ou espaços públicos sem iluminação adequada e vigilância.
Garantir uma avaliação imparcial dos casos reportados, atribuindo, logo a partir do canal de denúncia, a tramitação do processo a uma comissão/provedoria externa ou mista.
Garantir a protecção de vítimas e testemunhas e da confidencialidade do conteúdo da participação.
Associar os códigos de conduta e boas práticas a regulamentos disciplinares que explicitem quais as medidas sancionatórias aplicáveis em função da gravidade das condutas, assim como a efectiva aplicação de modo a quebrar a percepção de imparcialidade.
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Cristiana Faria Moreira