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Não bastava querer. Ser empresário antes do 25 de Abril era uma prova de obstáculos

Esperavam-se anos por uma autorização para abrir uma empresa, que nem sempre chegava. Entre os limites às importações, os consensos dos grémios e os preços tabelados, abrir negócio não se tratava de uma tarefa fácil. Era assim antes do 25 de Abril. Fabricar pneus, produzir cimento, abrir um banco ou mesmo uma padaria nada tinha de simples durante o Estado Novo. O que é hoje regulado pelo mercado livre, era, antes da revolução de 25 de Abril de 1974 (e algum tempo depois também) decidido pelo Estado, através de morosos e burocráticos processos que incluíam, muitas vezes, que as empresas já a operar tivessem de dar luz verde à entrada de um novo concorrente. Em teoria, nada era proibido. Mas, na prática, ser empresário não era para todos. Nalguns casos, como o do negócio do pão, abrir loja não era o problema, mas sim o preço da carcaça. “Uma pessoa tinha de contar com o preço que ia ser estabelecido pelo Estado, pela organização corporativa do ramo ou do setor, e portanto, tudo isso dificultava a escolha, digamos, livre dos agentes económicos. [Por exemplo,] o pão tinha todo um circuito de preços fixados, ou decididos anualmente, entre a produção do trigo, a moagem da farinha, o próprio fabrico de pão, a venda do pão. Tudo isto estava num ciclo altamente burocratizado, que estabelecia os preços”, explica ao Negócios o historiador económico Luciano Amaral. Este é o caso mais famoso que se replicava numa série de outros ramos agrícolas. Mas era na indústria que as regras do regime mais se faziam sentir, através de um grande protecionismo e pela via do chamado “condicionamento industrial”, que, entre outras coisas, impedia o surgimento de novas empresas sem a concordância dos concorrentes. “Uma pessoa queria abrir uma empresa, preenchia um formulário. Aquilo era recebido pelo ministério da tutela, que foi variando ao longo do tempo. O ministério recebia o papel, consultava as empresas que já estavam instaladas no mercado para perguntar se elas achavam bem ou mal a introdução desta nova empresa. Em geral, evidentemente, as empresas achavam mal que fosse introduzida mais uma empresa no mercado”, conta o investigador da Nova School of Business and Economics. A esperada autorização podia demorar, “de tal maneira que uma pessoa podia pedir a licença num ano e estava anos à espera de ser concedida”, sendo que a taxa de recusas era “bastante elevada”. Podia também dar-se o caso de a introdução de condições fazer “com que o interessado inicial deixasse de se interessar”. A carregar o vídeo … Em nome da paz social Nem todas as empresas eram abrangidas, mas todas as que “não fossem aquilo que eles chamavam de indústrias domésticas, isto é, empresas artesanais muito pequenas, tinham de ser sujeitas ao mecanismo do condicionamento industrial”, diz Amaral. E quanto maior, pior: em setores industriais onde a dimensão das empresas era mais significativa – como a metalomecânica, setor químico, agroalimentar, de fabrico de cimento ou pneus – a vigilância sobre qualquer ampliação da capacidade produtiva era cerrada. A justificação era a da paz social. “Era o risco de excesso de capacidade produtiva, grande concentração operária e, de repente, por alguma má evolução da economia, do mercado, ficar um grande número de operários desempregados. Isso é que era, diria, o pesadelo do poder político”, explica ao Negócios o também historiador económico Nuno Valério. Um exemplo é o caso do cimento, onde o condicionamento era mais significativo. Quando o Estado quis apostar na hidroeletricidade, em detrimento do carvão, foi necessário construir barragens – esses empreendimentos obrigavam à concentração de um elevado número de operários num local, deixando a oferta de emprego de existir no final da obra. A juntar a este critério da capacidade de produção e ao impacto que um novo operador podia ter nos preços, era ainda considerado, por exemplo, se o produto que aquela nova empresa ia produzir podia substituir um produto importado – isso jogaria a favor do interessado, dado que o regime funcionava numa lógica protecionista e o capital estrangeiro era bastante limitado. A carregar o vídeo … Mas nem todas as importações eram más. Aliás, quando vinham das colónias, podiam mesmo ter prioridade em relação à produção doméstica. “Uma coisa muito antiga que existia em Portugal era a ideia do desenvolvimento de uma indústria açucareira com base na beterraba. Nunca foi para a frente, porque havia as compras preferenciais aos produtores de açúcar coloniais”, exemplifica Luciano Amaral. Também aconteceu com os têxteis, que durante algum tempo tiveram “mercados cativos nas colónias” e até num dos setores que hoje dão fama a Portugal: “O vinho português, que até certa altura era uma zurrapa horrorosa, era vendido para os mercados cativos das colónias”. Esta relação condicionada com o exterior começou a mudar com a adesão de Portugal à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA na sigla em inglês), em 1960. A partir dessa altura, as exportações ganham maior importância e deixa de ser possível operar num sistema tão protecionista. É nessa altura que crescem muitos setores como os têxteis, que passam a ser mais vocacionados para a exportação, e aumenta a produção, por exemplo, de alguns produtos eletrónicos. Gradualmente, o condicionamento industrial foi perdendo força, ainda que não tenha desaparecido. “Diria que no período imediatamente antes do 25 de Abril, já era claro que este controle do mercado não poderia continuar, basicamente por causa da concorrência externa, não tanto pelo aparecimento de concorrentes em Portugal”, conta Nuno Valério, investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade Técnica de Lisboa. Os grandes e as portas rotativas Com mais ou menos força, consoante a época, o certo é que o sistema que condicionava a atribuição das licenças acabava por estar sujeito a influências daqueles que dele mais beneficiavam – as grandes empresas instaladas. “Não quero usar a expressão tráfico de influências para não sugerir que era necessariamente ilegal ou, enfim, envolvia quaisquer coisas menos razoáveis do ponto de vista ético, mas é evidente que estava muito suscetível a esse tipo de atuações”, aponta o especialista em história económica portuguesa. As grandes empresas tinham na mão uma grande capacidade de combater a concorrência e, “sobretudo, havia aquilo que hoje, muitas vezes, se chamam as portas rotativas”. Por outras palavras: “uma grande circulação entre o poder político e as administrações das principais empresas existentes no país”. A diferença, explica Valério, é que na altura isso não suscitava, “de maneira nenhuma, o tipo de incómodo que hoje, tantas vezes, vemos acontecer”. A carregar o vídeo … E quem eram esses gigantes que controlavam os grandes meios de produção à época? Estão longe de ser nomes do passado: CUF, Champalimaud, Espírito Santo, Banco Nacional Ultramarino. Outros acabaram por desaparecer, como o Banco Português do Atlântico ou o Banco Borges & Irmão. “Esses, claro, tinham um grande poder de lóbi e exerciam-no. E os governos do regime dialogavam muito de perto com eles”, comenta Amaral, um dos autores do artigo “Business groups in Portugal in the Estado Novo period (1930,1974): family, power and structural change”, publicado na revista Business History. Mas estas grandes empresas – algumas, como a CUF, em plena ascensão em 1974 – ficaram viradas do avesso com a mudança de regime e a onda de nacionalizações que se seguiu. “Em 1975, o grupo CUF foi praticamente todo nacionalizado. O Champalimaud também, o Espírito Santo também. Todos estes grupos tinham bancos”, explica o investigador. “Não houve nenhum boom empresarial. Havia setores básicos da economia nos quais não podia haver atividade privada. E a Constituição de 1976 proibia que as empresas que tivessem sido nacionalizadas fossem reprivatizadas”, acrescenta, explicando que os setores que não podiam estar na mãos de privados representavam 10 a 15% do PIB. A carregar o vídeo … Nuno Valério ressalva, no entanto, que o desaparecimento de algumas empresas não esteve exclusivamente relacionado com as nacionalizações, mas com a crise internacional, relacionada com o chamado “primeiro choque petrolífero” que afetou o mundo em 1973. “E essa crise reflete-se de forma muito clara sobre a economia portuguesa, o que significa que todo este ambiente de crescimento, de prosperidade, que era realmente muito claro antes do outono de 1973, mudou completamente”, conta. O investigador, que se licenciou em 1975, diz mesmo que esse cenário veio ajudar a população portuguesa a aceitar mais facilmente a necessidade de uma mudança política. “Antes do 25 de Abril, a situação era repressiva. E a grande preocupação de alguém como eu, que era estudante e estava prestes a ser chamado para o serviço militar, era a guerra. E isto era pesado e desagradável. Mas a situação económica era uma maravilha”, recorda. “De repente”, relata, “a situação económica muda e há ali seis meses em que está tudo mal”. “A parte política é repressiva e a economia está a correr mal. Vem o 25 de Abril e as coisas, pelo menos na parte política, mudam. E começa a haver um otimismo enorme a respeito do que é que vai ser o futuro”, explica. Mas esse otimismo não mascarava a repercussão “muito grave” que a crise internacional teve na economia portuguesa. “De certo modo, as nacionalizações, que são a fase seguinte, acabam por tirar a esses grandes grupos e a muitas empresas a necessidade de terem que se adaptar”, comenta o professor do ISEG. O cenário só muda nos anos 1980, quando muitas destas empresas são, então, reprivatizadas. Mas uma parte nunca voltou a ter a mesma dimensão. Os historiadores apontam o exemplo do grupo CUF, que, a certa altura, já se dedicava praticamente a tudo: começou no setor químico, mas expandiu-se para a banca, construção, seguros, engenharia, têxtil, alimentação, metalo-mecânica, papel, tabaco, estaleiros navais, navegação, hotelaria, entre outros. Pouco antes do 25 de Abril, tinha sob a sua alçada quase duas centenas de empresas e empregava milhares de pessoas. “O grupo CUF, hoje em dia, é famoso pelos hospitais. Totalmente diferente do que fazia antes, não é”, questiona Amaral, ressalvando que o grupo não era “completamente alheio” ao negócio da saúde, já que tinham o grande hospital na Avenida Infante Santo, em Lisboa. “Mas era uma pequena coisa. Foi aquilo que acabou por sobreviver desse processo de nacionalização, em que viram os seus ativos praticamente todos expropriados. E quando regressaram, não quiseram ou não foram capazes de voltar a essa empresa. O grupo CUF transformou-se neste grupo muito mais pequeno”, diz. Azar de uns, sorte de outros. Com a queda ou enfraquecimento de grandes grupos – que nalguns casos viram os proprietários presos ou fugidos para o estrangeiros -, abriram-se oportunidades para outros, que não existiam antes do 25 de Abril ou eram pequenos e escaparam às nacionalizações, como o grupo Amorim ou a Jerónimo Martins. “Aproveitaram as oportunidades que foram sendo abertas dentro dos setores em que os privados podiam operar. Transformaram-se nos grandes grupos económicos da democracia”, aponta. O caso Sonae e a “greve ao contrário” Tanto Amaral como Valério apontam para um exemplo que consideram paradigmático deste fenómeno: a Sonae. “Era uma coisa pequenina, sobreviveu às nacionalizações e depois foi dos primeiros a conseguir aproveitar, antes de os outros conseguirem reemergir, restabelecer-se. Conseguiu crescer e tornar-se um grupo significativo na economia portuguesa, aproveitando essa conjuntura”, descreve o professor do ISEG. Em 1959, quando nasceu, era a Sociedade Nacional de Estratificados – é daqui que vai nascer o acrónimo Sonae. Expande-se em 1971 para os aglomerados de madeira através da aquisição da Novopan, nessa altura já com Belmiro de Azevedo a bordo, contratado em 1965. Quando se dá o 25 de Abril, a empresa estava a tentar fazer um “turnaround”, depois de o seu negócio “core”, que utilizava o engaço das uvas para fabricar os estratificados, ter deixado de ser lucrativo. Estava em construção a fábrica na Maia, que se tornaria a sede do grupo, com Ricardo Rocha, diretor de Relação com Investidores da Sonae, a descrever o período como um de “consolidação e de estruturação” da empresa. Em 1978, o Instituto das Participações do Estado (IPE) tenta avançar com um processo de nacionalização, nomeando administradores para a Sonae, mas estes nunca conseguem entrar nas instalações, conta Ricardo Rocha. Belmiro de Azevedo demite-se, juntamente com toda a direção do grupo, “e dá-se algo muito estranho, que é uma greve ao contrário”: “Durante quatro meses, as portas da fábrica estiveram bloqueadas, apesar da fábrica continuar a laborar”, recorda. Foi uma greve, segundo a Sonae, em defesa do patronato. “Os trabalhadores exigiam que a direção, encabeçada pelo engenheiro Belmiro de Azevedo, e todos os outros 12 elementos que faziam parte da direção da Sonae, regressassem à empresa”, diz. Mas porquê? “Já estamos a falar de 1978, portanto já tinha havido muitas nacionalizações antes com resultados maus”. Os trabalhadores, cerca de 300, fizeram greve “não contra a gestão, mas sim porque queriam que a gestão voltasse”, salienta o diretor de Relação com Investidores. O próprio Belmiro de Azevedo viria a recordar o episódio, descrevendo o funcionamento desta “greve reacionária” na biografia “Belmiro – História de uma vida”, de Magalhães Pinto (Âncora Editora, 2001). “Fundamental era que recebessem os salários. Portanto, não podiam fazer uma greve normal. Assim, um dia parava a prensa, no outro dia outra máquina. E por aí fora. Eram as tácticas grevistas. Mas não havia ninguém para assinar cheques. De modo que eles geriam a caixa. Os clientes e fornecedores colaboraram. Pagavam-se salários em dinheiro. Pagava-se aos fornecedores a dinheiro. As fábricas paravam intermitentemente”, relata. Ricardo Rocha admite, no entanto, que esta foi uma situação atípica e que “acho que só foi possível porque a Sonae estava muito longe de Lisboa”. “Acho que se fosse uma empresa em Lisboa dificilmente isto seria possível, mas aqui, efetivamente, os administradores nunca conseguiram entrar, até que, a certa altura, o próprio IPE desiste da ideia”, conta, em entrevista a partir dos escritórios da Maia. A mudança de regime não veio mudar, de um momento para o outro, as condicionantes à indústria. Ainda antes do episódio da greve, em 1975, o Diário do Governo publica as contas de 1974 da Novopan, a empresa que a Sonae adquiriu três anos antes. Aqui, são expressas algumas queixas quanto aos custos das matérias-primas e da mão-de-obra. “A resina manteve-se durante o ano a custo elevado, largamente superior às cotações internacionais, não tendo sido possível encontrar argumentação para a sua baixa, dado que os dois únicos produtores nacionais têm acordo de preço e de clientes, que evitou o funcionamento normal do mecanismo da concorrência”, pode ler-se. O relatório, diz Ricardo Rocha, mostra como “todos esses mecanismos que depois começam a desaparecer ao longo do tempo, não desapareceram logo no dia 26 de abril de 1974”. “As empresas estavam limitadas não só a montante como na quantidade de produtos que precisavam”, aponta. Com a estabilização do mercado, mais no início dos anos 1980, a Sonae começa a comprar outras empresas, a exportar, e torna-se uma multinacional da madeira. Daí segue para a diversificação para o retalho alimentar e depois o retalho de eletrónica e de têxtil, e por fim para os centros comerciais e telecomunicações, com parcerias internacionais. “Se estivéssemos num contexto de condicionamento industrial pré-25 de Abril, provavelmente isto não seria possível. Primeiro, porque era necessária uma licença para abrir um negócio. Além disso, estamos a falar de uma parceria com uma entidade estrangeira e todos lemos nos livros de história as famosas alegações do Orgulhosamente sós “, diz Ricardo Rocha. O diretor de Relação com Investidores sublinha que o 25 de Abril permitiu que “uma empresa abrisse um hipermercado porque assim o decidiu” e que isso não é coisa pouca: “Imaginar o que teria sido a história do grupo antes do 25 de Abril de 1974 creio que não é possível. Provavelmente continuaria a ser uma empresa em Portugal, com bastantes limitações de crescimento nacional, mas também internacional e sem a possibilidade de ter expandido e de ter diversificado para novos negócios”. Inês Santinhos Gonçalves inesgoncalves@negocios.pt 21 de Abril de 2024 às 18:00