No centenário de Francisco Pereira de Moura: o professor do ISEG que foi um gigante da democracia portuguesa
10-04-2025
Fundou a ciência económica moderna em Portugal. Foi preso pela ditadura e expulso do ensino. Podia ter sido primeiro-ministro e foi governante depois de Abril. Francisco Pereira de Moura, cujo centenário de nascimento se evoca agora, foi uma figura marcante da democracia
Quando, no início do período de aulas, aquele professor franzino entrava no anfiteatro onde os estudantes se apinhavam, talvez não impressionasse alguns dos presentes. Para mais, dedicava-se ao primeiro dos cinco anos da licenciatura, seguindo o princípio de que quem gosta de dar aulas se deve empenhar em abrir a porta do curso, pelo que nem toda aquela gente o conheceria ainda. Contudo, era uma lenda para quem já tinha passado pelo Instituto, a mais antiga Faculdade de Economia do país, por ter renovado o seu ensino, e para quem se opunha ao salazarismo. Os seus livros foram as mais importantes análises sobre a economia portuguesa e eram lidos com avidez, dando lugar a sucessivas edições. O professor era Francisco Pereira de Moura, que criou a ciência económica moderna em Portugal e foi um exemplo de cidadania. Passam este abril 100 anos sobre o seu nascimento, e o seu percurso é lembrado por este artigo, ao mesmo tempo que é inaugurada uma exposição comemorativa na sua escola, o ISEG.
Nascido em 1925, Pereira de Moura esteve inscrito no Instituto Superior Técnico (IST) entre 1942 e 1945, enquanto decorria a Segunda Guerra Mundial. Era a área do seu pai, amigo de outro engenheiro, o ex-secretário de Estado Ferreira Dias, e que partilhava com ele a ambição da eletrificação e industrialização nacional, um intuito prejudicado pelas idiossincrasias de Salazar. O seu irmão mais velho também seguiu Engenharia. Em qualquer caso, por conselho médico, que sugeria que a fábrica poderia ser um ambiente insalubre para o jovem, transferiu-se para o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF) em 1946. Completou o curso de Finanças em 1950 e ainda teve de obter mais qualificações para poder ter a equivalência em Economia, cujo curso tinha sido autorizado só no ano anterior. Onze anos depois concluiu o seu doutoramento e, com 36 anos, era um jovem nessas lides.
Tinha então o cargo de assistente e, nessa qualidade, outra particularidade que demonstrava o reconhecimento que obtivera, publicara as suas “Lições de Economia”, o livro que se estudava no primeiro ano. Dava aulas nessa cadeira introdutória das oito até à uma da tarde em dois dias (e chegou a dar 20 horas por semana), e, como contou numa entrevista ao seu colega Jorge Santos quando se jubilou, a tarefa era tão cansativa que achou por bem ocupar algum do tempo com trabalhos de grupo, o que beneficiava os estudantes e não deixou de ser uma ousada inovação pedagógica.
Tinha sido entretanto nomeado procurador à Câmara Corporativa em 1957, onde foi encarregado de analisar o II Plano de Fomento, que determinaria as escolhas económicas entre 1959 e 1964, e de escrever o parecer sobre a adesão à EFTA. Em 1961 foi convidado para mais um mandato de quatro anos, que aceitou. Houve depois tensão entre Pereira de Moura e os mandantes do regime, dado que, na sequência da campanha de Humberto Delgado em 1958, o regime mudou o sistema de eleição do Presidente, substituindo a votação popular por um colégio eleitoral de 600 pessoas – e ele, como membro da Câmara Corporativa, fazia parte desse grupo.
Foi o que o levou, em julho de 1965, a escrever uma carta aos outros membros da Câmara, 10 dias antes da reeleição de Américo Tomás, para propor uma reflexão sobre o modelo e as suas escolhas. A longa carta é um corajoso inventário das contradições de uma eleição com um único candidato proposto pelo partido único, a União Nacional, e sobre os problemas do país, desde a revolta operária ao colonialismo, ao atraso económico e ao autoritarismo e falta de liberdade de expressão. Foi um diagnóstico implacável sobre a ditadura.
Pereira de Moura já tinha entrado em choque com o salazarismo aquando da crise académica de 1962. Num manuscrito posterior e não datado, a que pôs o título de “A Crise Universitária de 1962 – A Noite em Que Estive para Ser Assassinado”, contou os detalhes da ocupação da cantina da cidade universitária por cerca de 3000 estudantes e mais de 100 professores, em solidariedade com grevistas da fome que protestavam contra a proibição da comemoração do Dia do Estudante. Com Lindley Cintra, professor da Faculdade de Letras, Pereira de Moura iniciou contactos no local para evitar a intervenção da polícia e, enquanto esperava à porta da cantina às duas horas da manhã, foi abordado pelos quatro ocupantes de um Volkswagen, que eram membros do Serviço de Assalto da Legião Portuguesa e que o convidaram a entrar no carro.
Identificou-se como professor e como procurador à Câmara Corporativa, declinou o convite e esperou a chegada da polícia. Esta não tardou. A cantina foi evacuada e foram usados autocarros da Carris, de dois andares, para levar as raparigas para o Governo Civil e os rapazes para Caxias e para o quartel da polícia de choque na Parede. Cintra e Moura foram num carro da PIDE para a sede daquela polícia, onde discutiram a libertação dos jovens com o diretor, Silva Pais (o inspetor Barbieri Cardoso, o orquestrador da operação que assassinou Delgado, também estava na sala). Pelas oito horas da noite seguinte conseguiram a garantia de que todos seriam soltos. O que Pereira de Moura só soube mais tarde, pela boca do seu colega Pinto Barbosa, à época ministro das Finanças, é que aqueles legionários planeavam assassiná-lo.
A atitude democrática de Pereira de Moura não surpreendeu os seus próximos. Defendia os estudantes por retidão e contestava a ditadura porque a conhecia. Já no Técnico, o futuro economista tinha acompanhado o esforço de alguns colegas mais velhos no que se chamou então a “experiência da Curraleira”, que consistiu na participação de membros da Juventude Universitária Católica (JUC) em trabalhos sociais num bairro pobre e sem condições da periferia de Lisboa. Esta sensibilidade à realidade da sociedade portuguesa foi o primeiro contacto de muitos destes jovens com os segredos da ditadura. Foi o que o levou a aceitar ser presidente da JUC e, ao concluir o curso em 1950, a integrar uma delegação da organização a Roma, em que se incluía Rogério Martins, futuro secretário de Estado da Indústria do primeiro Governo de Caetano em 1969, Adérito Sedas Nunes, outro dos criadores das ciências sociais em Portugal, o futuro professor de Medicina José Pinto Correia e, entre outras pessoas, Eugénia, a sua futura mulher. O sentido cristão do respeito pelo povo foi a sua escola política.
O ano de 1969 foi aquele em que a rutura com a ditadura se manifestou de modo irreversível: Pereira de Moura aceitou ser o primeiro candidato da lista da oposição por Lisboa nas eleições desse ano. Ao mesmo tempo publicou um dos seus livros mais influentes, “Para Onde Vai a Economia Portuguesa?”, em que se atrevia a apresentar diferentes alternativas para o futuro do país. Snu Abecasis, diretora da D. Quixote, foi responsável pelo lançamento do livro e pela sua reedição, mas explicou depois ao autor que tinha sido aconselhada a não publicar mais nada dele, pelo que foi a Seara Nova que albergou as edições seguintes.
O livro tornou-se leitura obrigatória para os democratas, e anos mais tarde o autor divertia-se a lembrar os estratagemas para fazer escapar à vigilância da censura as novas edições, ampliadas com mais texto e mais contundentes, pois era dito aos incautos censores que se tratava de uma simples reimpressão já autorizada. Em todo o caso, não se escondia: em 1972 fez um conjunto de conferências para jovens da JUC e para sacerdotes do Porto que estavam “em reciclagem”, ao que contou, e ainda participou num diálogo e num livro sobre cristianismo e marxismo, uma ponte que o regime tanto temia.
Professor e governante
Reconhecido como o economista que criara os estudos modernos da sua ciência e respeitado entre os seus colegas, Pereira de Moura enfrentou no início da década de 1970 pressões para o fecho da sua Faculdade. Como explicou na referida entrevista a Jorge Santos, que é de 1995, o ano da sua jubilação ao ter atingido os 70 anos, essas pressões resultavam de empresários afetos ao salazarismo e ao marcelismo, que se indignavam com as mudanças pedagógicas e com o ambiente de crítica que se instalara no que consideravam ser a sua escola. A aceitação da autoavaliação pelos próprios estudantes numa cadeira, no curso de 1969-70, foi um dos motivos que mais acendeu essa polémica, se bem que Pereira de Moura assegurasse mais tarde que a avaliação fora rigorosa e conscienciosa.
Nada havia a fazer, a escola era vista como um “antro de comunistas”, como me disse uma figura da ditadura ao saber que o estudante liceal que eu então era queria seguir aquele curso.
Numa área científica conservadora, foi dos mais brilhantes espíritos inquietos: queria aprender e ensinar e não se satisfazia com banalidades ou simplificações
Em outubro de 1972, o estudante Ribeiro dos Santos foi assassinado a tiro num anfiteatro do ISCEF e no final de dezembro Pereira de Moura foi detido na Capela do Rato e levado para Caxias com outros participantes naquela vigília contra a Guerra Colonial. Foi aí que o conheci. Depois de alguns dias incomunicável, foi libertado sob caução e imediatamente expulso do ensino – tinha sido nomeado professor catedrático uma semana antes. O enorme impacto desta iniciativa de católicos progressistas pode ser medido pela descrição que dela fez Marcello Caetano, uma vez refugiado no exílio brasileiro: “A pretexto da comemoração do Dia da Paz Universal, instalaram-se dentro dela [Capela do Rato] uns tantos senhores para protestar contra a Guerra Colonial. Durante horas seguidas, no meio de cartazes publicitários alusivos aos fins da reunião, os contestatários, entre os quais havia católicos militantes, antigos católicos e outros que não eram, que nunca tinham sido, nem faziam tenção de ser católicos, iam entremeando as missas e as rezas com discursos e objurgatórias contra a defesa do Ultramar e distribuíam panfletos nesse sentido. As autoridades eclesiásticas nada fizeram para pôr termo ao escândalo. A autoridade civil teve de intervir. […] A polícia entrou na capela e cordatamente convidou as pessoas presentes a sair” (“Depoimento”, pág. 84).
O temor da revolta de sectores católicos e do protesto contra a Guerra Colonial indicava a fragilidade do regime. Estava de facto isolado internacionalmente, e diversos economistas norte-americanos, incluindo Prémios Nobel da Economia como Paul Samuelson e Kenneth Arrow, ou ainda Robert Solow, que viria mais tarde a receber o mesmo prémio, exigiram a reintegração de Pereira de Moura na sua Faculdade; juntaram-se-lhes logo de seguida outros académicos, como François Perroux, do Colégio de França, e Jacques Delors, mas debalde. E foi então que chegou o golpe militar do 25 de Abril.
Governante e cientista
Derrubado o regime, Pereira de Moura voltou à porta de Caxias para acompanhar a libertação dos presos políticos; no 1º de Maio discursou no estádio do que é hoje o Inatel, em Alvalade. Como o advogado Vasco Vieira de Almeida revelou numa entrevista sobre esses dias, alguns oficiais da Marinha propuseram que Moura fosse o primeiro-ministro, e é sabido que Vítor Alves sugeriu o ex-deputado Miller Guerra, que depois aderiu ao PS e foi deputado constituinte, e houve ainda quem alvitrasse o nome de outro socialista, Raul Rego. Contudo, Spínola escolheu Adelino da Palma Carlos, e Moura ficou como ministro sem pasta.
Conta Vieira de Almeida que na cerimónia da tomada de posse, dado que Spínola tinha imposto o fato e gravata, Moura se apresentou de gola alta. Em qualquer caso, malgrado a etiqueta, as suas relações com o general foram sempre geladas. O então Presidente e o seu primeiro-ministro opuseram-se-lhe sempre: quando procurou fixar o salário mínimo em 6600 escudos (ficou em 3300) ou quando procurou reduzir o poder de Vieira de Almeida, que tinha a coordenação económica, Spínola fez-lhe sempre frente. Já depois da demissão deste, foi ministro dos quarto e quinto Governos Provisórios, que terminou os seus dias em meados de setembro de 1975.
Regressou então à Faculdade e, nas duas difíceis décadas seguintes, contribuiu para a sua reorganização e estabilidade. O ISCEF, depois ISE e agora ISEG, era Pereira de Moura. Numa área científica que reconhecia ser essencialmente conservadora, foi dos mais brilhantes espíritos inquietos: queria aprender e ensinar e não se satisfazia com banalidades ou simplificações. Tinha sido um dos promotores do estudo de John Maynard Keynes e trouxera para a Universidade as técnicas de planeamento de Jan Tinbergen, um dos dois galardoados com o primeiro Nobel da Economia, em 1969. Foi com esse interesse científico que recebeu em Lisboa John Hicks, que 30 anos antes tinha proposto uma formalização matemática das ideias de Keynes e a quem pediu explicações sobre a definição das suas variáveis, o que levou o seu colega a esboçar-lhe o modelo num rascunho que um dia há de ser achado. Pereira de Moura queria saber.
Foi assim que, ao chegar ao final da sua carreira académica, encontrou dois motivos de otimismo. O primeiro era a escolha social, a vontade de transformação ou, como exprimiu na sua conferência de jubilação, a sua satisfação por encontrar “cada vez mais homens e mulheres a dedicarem as suas vidas, quando não a sacrificá-las, para que sejam reduzidos ou suprimidos a fome, a doença, a ignorância e as tiranias”. A segunda razão era de natureza estritamente científica: nos seus próprios termos, percebeu que os problemas teóricos na Economia não podem ser tratados com cálculo marginal ou com a determinação de órbitas newtonianas, subordinadas a leis como a da gravidade ou da atração mecânica de corpos celestiais.
Em 1972 foi detido e levado para Caxias com outros participantes na vigília contra a Guerra Colonial. Libertado sob caução, seria expulso do ensino
A Economia é uma ciência social que estuda as indeterminações e as escolhas que se disputam na vida concreta. Renegava por isso o conceito de “capital humano”, desconfiava dos modelos de equilíbrio fictício, procurava descrever a evolução com equações dinâmicas e interessou-se pelos ciclos de longo prazo e por abordagens da complexidade. O que desejava era uma economia debruçada sobre a realidade, curiosa sobre as outras ciências, capaz de inquirir a partir de dados e não de conceitos fantasiosos – e reivindicou tudo isso.
Esta curiosidade já estava presente na sua tese de 1961 e era afirmada até na epígrafe retirada de “A Cidade e as Serras”, de Eça, um dos seus livros preferidos: quando o narrador entra na esplêndida biblioteca de Jacinto, descobre um volume de Adam Smith e conclui que “era pois a região dos Economistas. Avancei – e percorri, espantado, oito metros de Economia Política”. Foi essa frase que encimou a tese, e não era um mero artifício literário, era uma alusão a toda a sua vida e revelava muito mais do que esses metros de prateleira: Pereira de Moura, dotado de extraordinária memória e vivacidade, lia e recitava às suas filhas passagens deste livro e de outros dos seus preferidos, sobretudo das aventuras de Júlio Verne, durante as suas férias de verão em São Pedro de Moel. Aquela biblioteca era o seu retiro em família, era a sua ciência e era como queria percorrer o mundo.
Mireille Silcoff
Mireille Silcoff