O imposto da guerra colonial que não morreu com o 25 de Abril
12-10-2024
O imposto extraordinário “para a defesa e valorização do Ultramar”, que entrou em vigor em 1962 e taxou em 10% os lucros de várias empresas, durou além de 1974, com vestígios até 1991.
“As crescentes exigências de defesa e valorização do Ultramar já determinaram a adopção de medidas destinadas a reforçar, através do imposto, o afluxo de recursos financeiros do Estado e, pode afirmar-se, exerceram considerável influência em algumas medidas de política fiscal.” O alerta consta da proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1962, em análise pelos deputados da Assembleia Nacional a 29 de Novembro de 1961.
Meses antes, em Abril de 1961, Salazar tinha proferido o discurso onde afirmava que tinha decidido que se iria “para Angola, rapidamente e em força”, frase histórica ligada ao início da guerra colonial, depois dos acontecimentos do início desse ano, em Luanda, quando o MPLA assaltou prisões e, no Norte de Angola, do massacre de civis pela UPA.
Na altura, como atesta o diário das sessões da Assembleia Nacional, chegou mesmo a circular o rumor do “congelamento de contas de depósito com vista à realização de um empréstimo forçado”.
Certo é que, com o conflito, as despesas do país subiram à boleia dos custos com as forças armadas, obrigando a desviar importantes recursos financeiros (que poderiam ter sido aplicados de outra forma) e a apostar em novos instrumentos de cobrança.
Neste último caso, Salazar optou pela criação de um imposto extraordinário que, lê-se no diário das sessões, “virá a incidir sobre os lucros de determinadas empresas comerciais e industriais , atenta a natureza da actividade exercida e sua dimensão”.
“Espera-se que fraudes não venham a generalizar-se, dado o seu carácter altamente reprovável, não só em atenção aos elevados objectivos da tributação como à natureza das empresas abrangidas”.
A dimensão da taxa, dizia-se no documento, devia ser considerada “moderada”, isto “tendo em consideração as presentes circunstâncias”, mas a ideia de um país unido num objectivo não evitava um alerta quanto à evasão fiscal.
“Espera-se que fraudes não venham a generalizar-se, dado o seu carácter altamente reprovável, não só em atenção aos elevados objectivos da tributação como à natureza das empresas abrangidas, as quais têm de supor-se esclarecidas e, deste modo, cônscias dos seus deveres para com as comunidades nacionais”, colocando de parte a hipótese de haver “quaisquer isenções”.
Havia o risco, assumido, de que, “por falta de fiscalização adequada”, a cobrança de impostos para a defesa do Ultramar ficasse “abaixo do seu cômputo por desvio artificioso, obrigando a recorrer a outras fontes mais débeis por força das circunstâncias”.
Taxa de 10% sobre os lucros
Da estratégia de novos fundos saiu o artigo 8.º da Lei 2111, de 21 de Dezembro de 1961, o qual institui a criação de um imposto extraordinário “para a defesa e valorização do Ultramar”, com uma taxa de 10% sobre os lucros de “todas as sociedades ou empresas que explorem alguma concessão de serviço público ou actividade industrial em regime de exclusivo” e sobre “as que exerçam outra actividade a definir pelo Governo, desde que beneficiem de qualquer privilégio ou de situação excepcional de mercado”.
No mesmo diploma, sublinhava-se que seria “dada prioridade aos encargos com a defesa nacional” em termos do Orçamento para o país. O valor previsto para o primeiro ano de existência do novo imposto seria de 80 milhões de escudos, ou 80 mil contos (39,4 milhões de euros a valores actuais), de acordo com o Orçamento do Estado (OE).
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Parecer enviado a Salazar sobre o novo imposto
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Outro imposto também criado em 1961 recaía sobre os produtos de luxo, com uma taxa de 15% a incidir sobre artigos como secadores de cabelo, máquinas de lavar roupa, artefactos de joalharia, relógios ou bonecas e brinquedos de valor superior a 100 escudos.
No caso do imposto de defesa do Ultramar, ficou clarificado, no regulamento de Abril de 1962 assinado pelo ministro das Finanças, Pinto Barbosa, que incidiria sobre empresas com concessões de serviço público, actividades industriais em regime de exclusividade e “actividades que beneficiam de privilégio ou de situação excepcional de mercado a definir em diploma especial”.
Encaixe abaixo do previsto na estreia
No primeiro ano de vigência deste imposto, o encaixe ficou abaixo do previsto, fixando-se nos 70.905 contos, de acordo com os dados da Conta Geral do Estado (CGE).
Já as despesas com a guerra mais do que duplicaram face ao estimado, passando de 1.500.000 contos para 3.296.000 contos, obrigando a dois reforços de verbas. “Sem um orçamento extraordinário de guerra”, como se explicava, canalizava-se dinheiro público para pagar o conflito.
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Universo de empresas abrangidas seria alargado nos anos 70
No final desse ano, Pinto Barbosa publicou uma lista das actividades sujeitas ao imposto. Ao todo, enunciaram-se dez: explosivos, fornecimento de material militar “e quaisquer outros artigos para serviços públicos”, reparação de viaturas militares, fabrico de fósforos, cerâmica, petróleos, pneumáticos, ferro e “agentes ou comissários de fabricantes e negociantes nacionais ou estrangeiros, de compra e venda de propriedades ou de comércios não especificados”.
Seria o caso, por exemplo, da Sacor e da Sonap, bem como da Companhia Lusitana de Fósforos, da Anglo Portuguese Telephone Company (que explorou as redes telefónicas em Lisboa e no Porto até 1968), da Metalúrgica Duarte Ferreira, onde se montavam as viaturas Berliet, ou da Sorefame, ligada à produção de chaimites.
“Era um imposto dirigido às empresas que de algum modo eram directas beneficiárias da guerra”, nota Sérgio Vasques, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e doutorado em Direito Fiscal.
“Curiosamente, ainda que o imposto se justificasse pelo esforço militar, não onerava as empresas em função dos lucros que tivessem origem no Ultramar. Na prática, era um adicional sobre as grandes empresas presentes na metrópole”, acrescenta este ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (2009-2011) e autor de várias obras sobre impostos.
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“Na prática, era um adicional sobre as grandes empresas presentes na metrópole”, explica Sérgio Vasques, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
Matilde Fieschi
Empresas reclamam
Várias empresas quiseram escapar ao cumprimento desta exigência, reclamando para os tribunais, como a Estoril-Sol (dona do casino do Estoril), a CP e a TAP, mas viram as suas pretensões negadas pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA).
“A isenção de impostos e contribuições do Estado ou dos corpos administrativos, gerais ou especiais, conferida aos Transportes Aéreos Portugueses”, proferiu o STA num acórdão de Fevereiro de 1968, “não abrange o imposto para a defesa e valorização do Ultramar, por se tratar de um imposto extraordinário”.
Em 1963, a cobrança deste imposto directo dá um impulso, chegando aos 190.206 contos, para voltar a cair para 76.559 contos em 1964 (menos 43,4 mil contos face ao orçamentado), o equivalente a uma cobertura de 1% das despesas extraordinárias (no topo ficou o produto da dívida ou empréstimos, com 21%). Nesse ano, a guerra tinha já chegado também à Guiné e a Moçambique, obrigando à mobilização de mais meios, com destaque para o número de combatentes.
Com parte das despesas extraordinárias, no valor de 7.572.732 contos, a serem pagas principalmente pelas receitas ordinárias, evidenciava-se que “com os acontecimentos de África foi necessário mobilizar somas elevadas para [a] manutenção das forças no Ultramar”.
No virar da década, em 1969, o montante situou-se nos 225.075 contos (78,8 milhões de euros a valores de hoje), subindo para os 267.281 contos em 1970 (bem acima dos 165.000 contos orçamentados e, por exemplo, mais do dobro do encaixe com Certificados de Aforro). Já as despesas extraordinárias com a defesa nacional e a segurança pública foram de 9.474.890 contos, enquanto ao Plano de Fomento cabiam 4.627.199 contos.
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TAP foi uma das empresas que recorreu aos tribunais para tentar evitar o pagamento do imposto.
Carlos Lopes/Arquivo
Segundo um trabalho de Ricardo Ferraz publicado pelo gabinete de estratégia e estudos do Ministério da Economia em 2019, intitulado “Grande guerra e guerra colonial: quanto custaram aos cofres portugueses”, os anos de 1967 e 68 foram os que registaram um maior peso do custo com o conflito, chegando a rubrica “forças militares extraordinárias do Ultramar” a pesar cerca de 25% da despesa total do Estado.
“Em média, entre 1961 e 1974, estes encargos representaram 21% da despesa do Estado”, refere-se no trabalho, que deu depois origem a um livro.
Mais empresas visadas
Em 1971, já com Marcelo Caetano no poder, é decidida uma alteração no tipo de empresas visadas pelo imposto, alargando o seu universo. Assim, também os bancos (e os cambistas), como o Banco Português do Atlântico, Banco Borges e Irmão, Banco Espírito Santo e o Banco Pinto e Sotto Mayor passaram a estar incluídos, tal como as cervejeiras (incluindo armazéns e exportadores) e as empresas ligadas aos cimentos e à venda de gasolina. Especifica-se ainda que estão abrangidas as que façam “fornecimento a serviços públicos, civis ou militares, de quaisquer produtos ou artigos”.
No ano seguinte a essa mudança, o valor do imposto arrecadado sobe 379.559 contos (103,2 milhões de euros a valores de hoje), segundo a CGE referente a 1972, quando a despesa com “as forças militares extraordinárias no Ultramar” chegaram aos 7.672.058 contos.
Essa despesa obrigou ao desvio de cerca de 7.300.000 contos de receitas ordinárias para pagar a factura financeira de manter a guerra em África, além dos custos humanos.
O Estado Novo ainda inscreveu a cobrança deste imposto extraordinário no OE para 1974 com a intenção de prolongar o conflito, mas os planos desse ano foram alterados com a revolução militar que ocorreu a 25 de Abril e fez cair o regime iniciado em 1926 com a ditadura militar.
Ao todo, de acordo com a estimativa de Ricardo Ferraz, economista e investigador, as despesas com a guerra colonial totalizaram 21,8 mil milhões de euros, com os valores actualizados para 2018 (equivalente a 10,8% do PIB desse ano), além dos custos humanos.
O imposto sem nome
O imposto, no entanto, não morreu com o 25 de Abril, tendo sido mantido no OE para 1975, desenhado por Vasco Gonçalves (na qualidade de primeiro-ministro do Governo provisório) e Silva Lopes (ministro das Finanças), depois promulgado por Costa Gomes (Presidente da República).
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Com Vasco Gonçalves, na qualidade de primeiro-ministro do governo provisório, manteve-se o imposto no OE para 1975
Luís Vasconcelos
A rubrica “forças militares extraordinárias no Ultramar” ainda pesava bastante nas despesas, em pleno processo de descolonização, e o regime saído da Revolução optou por manter a sua cobrança tal como no Estado Novo.
Já no Orçamento para 1976 (depois do surto das nacionalizações, que abrangeu muitas das empresas que pagavam este tributo) pode ler-se que, para esse ano, “não se toma em consideração o imposto para a defesa e valorização do Ultramar, o qual já denotou em 1975 uma quebra apreciável na sua cobrança”. “A extinção deste imposto”, explicava-se, “insere-se no âmbito do processo de descolonização”, e tendo em conta “a finalidade com que foi criado”.
Isto, não obstante o clima de instabilidade económica e a “austeridade pedida pelo Governo, com os aumentos de impostos e de alguns preços” enunciados na lei do OE.
“Contudo, será de admitir que venham a realizar-se cobranças, no decurso do ano de 1976, provenientes de liquidações que se encontram pendentes”, referia o documento.
O imposto deixou de ter de facto a designação de “defesa do Ultramar”, mas, conforme refere Nuno Valério, professor catedrático do ISEG, manteve o seu contributo para os cofres do Estado, passando a ser enunciado apenas como o “imposto criado pelo artigo 8.º da Lei 2111”.
De acordo com os dados publicados no livro Os Impostos no Parlamento Português, coordenado por Nuno Valério (e que reuniu Ana Bela Nunes, Carlos Bastien e Maria Eugénia Mata), foram cobrados 253 mil contos em 1975, menos 8% do que no ano anterior.
Questionado sobre o porquê de o imposto não ter acabado logo em 1976, como enunciado no OE desse ano, Nuno Valério, investigador e especialista em História económica, com diversas obras publicadas, responde de forma simples: “Porque dava receita.”
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“Não era um imposto dos mais importantes, mas dava «uns trocos» e foi sempre cobrado até ao final dos anos 80”, afirma Nuno Valério, professor catedrático do ISEG e investigador
Nuno Ferreira Santos
“O Estado estava com saldo negativo nas contas públicas”, recorda, pelo que qualquer contributo era bem recebido. “Não era um imposto dos mais importantes, mas dava «uns trocos» e foi sempre cobrado até ao final dos anos 80”, afirma, altura em que ocorreu a reforma fiscal que deu origem ao IRC.
Segundo os dados constantes da obra sobre os impostos no Parlamento português, em 1976, este imposto rendeu 173.423 contos ao Estado, subindo depois para 324.510 no ano seguinte, montante que nunca mais igualou.
Ainda de acordo com os dados do livro coordenado por Nuno Valério, o valor cai de forma abrupta para 33.518 contos em 1980 (2,1 milhões de euros a valores actuais) e para 1056 contos no ano seguinte.
Verbas definham na década de 80
“O imposto tende a desaparecer na década de 1980, mas só acaba definitivamente com a reforma fiscal de 1986-1989”, diz Nuno Valério. Em 1985 a referência ao montante de encaixe é zero, passando em 1986, ano da concretização da adesão à CEE, para 81 contos.
Em 1988, último ano para o qual há referências na obra sobre os impostos, o valor foi de 121 contos (2025 euros a valores actuais), quando o imposto de mais-valias, por exemplo, gerou 571.846 contos.
Pelo meio havia ainda reclamações a correr na justiça, com o Supremo Tribunal de Justiça a declarar no seu acórdão, datado de Fevereiro de 1984, que o OE para 1975, “ao autorizar a cobrança do imposto para a defesa e valorização do Ultramar, criado pela Lei 2111, de 21 de Dezembro de 1961, não violou os princípios constitucionais sobre a matéria”, contrariando assim a pretensão da empresa Tecnidata.
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Em 1991 ainda entrou dinheiro por via deste imposto nos cofres das Finanças
Sandra Ribeiro
No início de década de 90 há ainda uma referência ao imposto na CGE de 1991, no valor de 10.000 contos (117 mil euros a valores actuais), conforme se lê no documento, tendo como única explicação possível o pagamento de dívida em atraso. O fim deste tributo criado por Salazar para ajudar a pagar os custos da guerra colonial só seria oficializado há cinco anos, em 2019.
Questionado pelo PÚBLICO, o Tribunal de Contas, através de fonte oficial, afirmou que “não há qualquer diploma que revogue expressamente a Lei n.º 2111, de 21 de Dezembro de 1961”. “Contudo, pela evolução do regime constante dos vários diplomas relativos ao tema ao longo dos anos, este imposto caiu em desuso na decorrência da própria história. Terá sido a Lei n.º 36/2019, de 19 de Maio, que, nas alíneas k) e zzzzzz) do artigo 4.º terão revogado expressamente o regime deste imposto”, esclareceu.
Esta lei de 2019 foi criada para facilitar o processo judicial, já que, de acordo com o documento, muitos diplomas permaneciam “subtraídos a qualquer revogação expressa ou declaração formal e inequívoca de cessação de vigência”.
Isto, explicou-se, dificultava “a tarefa interpretativa dos destinatários dessas normas e dos operadores jurídicos em geral, além de sobrecarregar a Administração Pública e os tribunais na sua actividade de aplicação do Direito ao caso concreto”.
Ao fim de 58 anos, acabavam os últimos vestígios que ainda existiam do imposto para a defesa e valorização do Ultramar.
tp.ocilbup@sobolalliv.siul