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Precisamos mesmo de um novo "relatório Porter"?

Em vez de exportarmos pessoas e importarmos estudos, devemos apostar na nossa inteligência e na capacidade de exportação de conhecimento, inclusive a partir das universidades. Professor Catedrático de Economia do ISEG, ULisboa Pedro Nuno Santos declarou há dias que “Portugal precisa de um novo relatório Porter”, com o propósito de identificar setores e áreas em que o país deve apostar. Será que, efetivamente, precisamos de algo desse tipo? Talvez sim, talvez não. Para os que não se recordam, o “relatório Porter” foi produzido por uma equipa ligada à Universidade de Harvard, coordenada pelo professor Michael Porter, entre 1992 e 1994, a pedido do XII Governo Constitucional. A principal recomendação de Porter centrou-se na aposta num conjunto de setores em que Portugal já detinha especialização e competências, aperfeiçoando a respetiva oferta através de dinâmicas de agregação de centros tecnológicos e outros atores às empresas dos principais clusters industriais, ajudando-as a subirem nas respetivas cadeias de valor. É de notar que essas dinâmicas já vinham de trás, pelo menos desde o Plano de Desenvolvimento Tecnológico da Indústria Transformadora Portuguesa, produzido uma década antes, durante o IX Governo Constitucional. E é também de notar que a principal mudança que se verificou na indústria transformadora portuguesa na década de 1990 antecedeu o relatório Porter, pois o contrato com a VW e a Ford que levou à constituição da Autoeuropa fora assinado em 1991. Foi esse investimento que suscitou uma nova dinâmica exportadora e levou a que se passasse de uma especialização internacional baseada sobretudo em setores de baixa tecnologia para setores de média tecnologia. Passados 30 anos do relatório Porter, não podemos qualificar a especialização económica portuguesa que se foi consolidando como brilhante Agora, passados 30 anos do relatório Porter, não podemos qualificar a especialização económica portuguesa que se foi consolidando como brilhante. A verdade é que não contamos na nossa economia com uma Samsung, ou uma TSMC ou uma Nvidia, ou, por exemplo, uma ASML. A nossa especialização continua a ser modesta e de natureza semiperiférica. Dito isto, deve-se reconhecer que os trabalhos da produção e apresentação das propostas de Porter e seus colegas criaram na época uma mobilização de industriais e outros atores, contribuindo indubitavelmente para um upgrading das ofertas dos setores tradicionais. Ainda assim, poder-se-á dizer que no seu essencial as recomendações de Porter foram sobretudo de natureza neorricardiana, no trilho do economista inglês David Ricardo, que em 1817 propusera que a Inglaterra se especializasse em têxteis, então um setor tecnologicamente avançado e com procura a crescer rapidamente, e Portugal se especializasse na produção de vinho, um setor que requeria competências básicas e cuja procura crescia a uma taxa incomparavelmente menor. O resultado de seguirmos essas “vantagens comparativas” ricardianas é por de mais conhecido. Admito que Pedro Nuno não quer um relatório Porter “tal e qual”. Certamente que o que ele está a advogar é a necessidade de se pensar em apostas devidamente fundamentadas por estudos. E Pedro Nuno sabe bem que tem estado na forja um estudo coordenado pelo professor Ha-Joon Chang, do Departamento de Economia do SOAS, Universidade de Londres. Esse estudo teve o seu início no XXIII Governo Constitucional e continuou a ser desenvolvido durante o XXIV Governo. Ao que sei, uma proposta essencial desse estudo consiste na qualificação da máquina do Estado português, para ela adquirir competências na formulação e avaliação das políticas industriais. Trata-se de uma boa proposta, embora, conhecendo a grelha de salários praticada pela função pública portuguesa, seja ainda bastante irrealista. Os técnicos mais capazes de desempenhar essas tarefas no Estado podem ganhar o dobro ou o triplo em empregos equivalentes nas consultoras privadas em Portugal e, se se dispuserem a ir trabalhar para a Comissão Europeia ou similares, podem facilmente multiplicar o salário por quatro ou mais vezes. A ideia de um funcionalismo público meritocrático e tecnicamente competente é imprescindível para termos um Estado que saiba pensar. Tem de se reconhecer que o Estado Novo conseguiu muito mais nesta frente do que os 50 anos de democracia. Os Planos de Fomento, produzidos entre 1953 e 1974, apesar de não estarem todos ao mesmo nível, revelavam competência técnica e pensamento estratégico. E a situação atual é tanto mais paradoxal, quanto Portugal tem agora níveis de instrução médios muitíssimo superiores aos existentes na época. A incapacidade que se instalou no Estado de pensar estrategicamente, especialmente depois de Portugal aderir à Comunidade Europeia, é desastrosa. Continuam a ser feitas apostas inconsequentes ou cuja consequência é em grande medida desconhecida. O caso das parcerias com as universidades americanas é um exemplo paradigmático. Estas parcerias, que custaram ao país 350 milhões de euros durante 18 anos, foram recentemente revalidadas com promessa de mais 90 milhões de euros até 2030. Essa decisão foi tomada sem que uma avaliação séria pudesse ser feita. Logo à partida, porque as estruturas de gestão dessas parcerias iniciadas em 2006 nunca dispuseram de sistemas de indicadores que permitissem a sua monitorização adequada e uma eficaz avaliação de impactos. Assim, num processo de captura de decisão por uma intrigante convergência na área do bloco central, procedeu-se à sua revalidação em dezembro de 2024, numa altura em que já se sabia muito bem para onde a América estava a ir. Conhecendo estes processos, não sei muito bem o que de bom poderemos esperar do próximo XXV Governo Constitucional. É desejável que o país, incluindo por boas razões o Estado, saiba para onde quer ir. As escolhas de setores a apostar, ao contrário do que aconteceu no tempo do relatório Porter, não me parece tão crítica. Parece-me mais importante a aposta em tecnologias-chave e em melhores empresas. Não é que Portugal não tenha empresas boas. Empresas bem conhecidas como a Bial, ou outras menos conhecidas, como a Mecalbi, uma empresa de mecatrónica de Castelo Branco que venceu o prémio inovação Cotec-BPI em 2023, são exemplos de empresas inovadoras e com níveis de produtividade que rivalizam com as melhoras existentes em economias mais desenvolvidas. Mas em Portugal existe uma enorme dispersão na distribuição dos níveis de produtividade no tecido empresarial. Enquanto, por exemplo, na Alemanha empresas com mais de 250 trabalhadores têm uma produtividade média cerca de 50% superior às com menos de dez trabalhadores, por cá o desvio correspondente é de quase 140%. Há, portanto, um enorme processo a concluir, para se obter efeitos de demonstração e harmonização de níveis de produtividade. Os milhares de milhões dos fundos estruturais e de coesão e do próprio Estado português (isto é, de todos nós, via impostos pagos) contribuíram para que algumas empresas progredissem muito bem, embora também tenham contribuído para a mera reprodução de interesses instalados. Há uma necessidade urgente de rejuvenescer o tecido empresarial e de qualificar as empresas existentes. E, tal como se deverá impedir que jovens mais qualificados emigrem – conclui-se, agregando para o período entre 2015 e 2023 dados das estatísticas de educação e demográficas do INE, que um número equivalente a 24% dos novos licenciados “fugiram” de Portugal -, há também que impedir que empresas de forte crescimento, como aconteceu com os “unicórnios” de origem portuguesa, emigrem. Temos de garantir um caminho no futuro. Uma adequada contratualização de incentivos permitirá reter empresas de maior potencial. Dever-se-á garantir aos jovens qualificados a perspetiva de carreiras estáveis e bem remuneradas, incluindo nesse pacote o acesso à habitação. Em vez de exportarmos pessoas e importarmos estudos, devemos apostar na nossa inteligência e na capacidade de exportação de conhecimento, inclusive a partir das universidades que neste momento se encontram impedidas de o fazer. Professor Catedrático de Economia do ISEG, ULisboa Manuel Mira Godinho