Redução da dívida é "muito discutível" do ponto de vista social
24-10-2023
Economistas Susana Peralta, António Bagão Félix e João Duque analisam política de “contas certas” seguida pelo Governo, numa altura em que as pessoas são pressionadas pelo aumento da carga fiscal.
“Do ponto de vista social, isto é muito discutível. Do ponto de vista financeiro, é ótimo”, considera ao DN o professor catedrático do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) João Duque, questionado sobre como é que os portugueses encaram o anúncio de que Portugal deixou a 3.ª posição na lista dos países mais endividados da União Europeia (UE), lugar que ocupava há 13 anos.
O que é que está em causa? O anúncio foi feito no início desta semana, quando o Eurostat confirmou que, no segundo trimestre de 2023, Portugal baixou dois lugares na lista dos países com a dívida pública mais alta em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). A primeira vez que o País chegou à 3.ª posição na tabela foi em 2010, quando a subida neste ranking coincidiu também com o endividamento das Administrações Públicas portuguesas a ultrapassar os 100% do PIB. Entretanto, houve dois momentos importantes em que a dívida pública escalou muito acima dos 130% do PIB. O primeiro, em 2014, já quando havia uma intervenção do resgate financeiro pedido por Portugal à Comissão Europeia, perante a crise das dívidas soberanas. Nessa intervenção, na qual se juntaram a Bruxelas o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu, que formaram o comité conhecido como troika, as contas públicas em Portugal acabaram por acompanhar uma forte contração da atividade económica.
O segundo momento, mais recente, coincidiu com a pandemia de covid-19, e com uma intervenção do Estado com o objetivo de não só salvar a economia como manter ativas as empresas.
Agora, com Portugal a fazer um movimento inverso, a baixar a notação dada no que diz respeito ao peso da dívida pública em relação ao PIB (e não no valor efetivo da dívida, porque esse tem vindo progressivamente a subir, sendo, porém, acompanhado por um crescimento da economia), economistas analisam o efeito desta situação inédita há 13 anos na vida das pessoas.
“Os portugueses são muito insensíveis a estes factos. Altamente insensíveis. Porque nem quando as coisas lhes dizem respeito a eles, à sua família, à sua posição, se preocupam com isso”, destaca João Duque. Para o economista, mesmo quando o Banco Central Europeu começou a subir as taxas diretoras para mitigar os efeitos da inflação, pressionando as prestações do crédito à habitação, os portugueses “não foram ao banco sequer pressionar para lhes darem alternativas para taxas fixas há um ano. Para converterem as suas dívidas de taxa variável em taxa fixa”, perante a subida das taxas Euribor.
Com este sinal dado desde há um ano, o economista desvaloriza a forma como as pessoas vão encarar o anúncio do gabinete de estatística da UE. “Se na sua vida isto não tem impacto, vão dar algum relevo ou importância ao facto de Portugal agora dever menos face ao PIB? Isto é de uma abstração tão grande para a esmagadora maioria das pessoas”, conclui, acrescentando que “as pessoas não se interessam por isso”. Mas a dívida da Administração Pública está a descer e é o resultado de uma decisão política que tem efeitos nas vidas das pessoas.
“Contas certas”
“É sempre bom sairmos do ranking dos piores”, diz ao DN o antigo ministro das Finanças e economista António Bagão Félix. “Isso é o aspeto positivo e tem, além do mais, vantagens, na medida em que as novas emissões podem beneficiar de uma melhor posição, de melhores ratings, melhor notação financeira. Não tornar tão caro a emissão da vida pública é mesmo um fator positivo. Que, aliás, depois se propaga para todos os agentes económicos, ou seja, de algum modo a notação da República, se melhora, em tese vai ter também melhorias no rating das grandes empresas e dos sistema financeiro do país”, analisa o também professor catedrático de Economia.
Se é bom ou mau, sublinha Bagão Félix, tudo se resume a uma questão de opções.
“Mix entre várias coisas”
E o que é que o Executivo liderado pelo primeiro-ministro, António Costa, e com a orientação do ministro das Finanças, Fernando Medina, tem de ter em conta quando promove uma política de contas certas? “Um Governo, em tese, seja ele qual for, teria de construir um mix entre várias coisas”, responde Bagão Félix.
“Em primeiro lugar, alguma redução fiscal. Em segundo lugar, o aumento do investimento público. Em terceiro lugar, a diminuição da dívida pública, ou seja desoneração das próximas gerações. Era fundamentalmente isto que estava em causa”, considera.
Porém, o antigo governante não teria seguido a opção do Governo em reduzir a dívida pública à custa de uma subida dos impostos e de um desinvestimento nos serviços públicos. “Se fosse eu a decidir, aqui sentado, talvez preferisse uma redução fiscal efetiva. Sem prejuízo das contas certas. Estamos a falar de um orçamento equilibrado, mas não necessariamente com excedente. Uma redução fiscal que não existe neste Orçamento do Estado. Porque a carga fiscal, medida em função do PIB, aumenta 0,2 pontos percentuais. Há redução no IRS, mas depois a contrapartida nos impostos indiretos e noutras situações. Acho que não houve nenhuma alteração no IRC, para nos tornarmos globalmente mais competitivos, não houve nenhuma redução da tributação na poupança, continua elevadíssima e castiga os aforradores, ainda por cima quando são oferecidas taxas reais negativas, que nem sequer compensam a inflação. Este seria o caminho, no meu ponto de vista, mas compreendo perfeitamente a opção do Governo, que também é defensável”, afirma Bagão Félix.
A explicação do também antigo ministro da Segurança Social propõe uma fórmula. “Que parte dos ganhos com a inflação deve ser revertida em menos impostos? Que parte dos ganhos com a inflação deve ser revertida em melhoria dos Serviços Públicos e aumento do investimento público? E que parte dos ganhos da inflação deve ser repercutida em menor dívida pública e, portanto, menos ónus sobre as gerações futuras, que são aquelas que vão pagar a dívida? Este mix, digamos, é um conjunto que vai ter várias políticas diferentes”, conclui o antigo governante, insistindo na sua própria visão para o problema, que passaria por uma “redução fiscal efetiva”, que as pessoas “sentissem na sua carteira, e a melhoria de alguns Serviços Públicos que, neste momento, designadamente na Educação, na Saúde e na Justiça, estão a atingir situações de rutura”.
“Coisas boas e coisas más”
“Ou se diminui a despesa ou se aumenta a receita”, aponta ao DN a economista Susana Peralta, analisando a opção seguida pelo Governo. “Nós podemos olhar para aquilo que sugere a evolução destas variáveis ao longo do tempo em Portugal. É que o Governo limitou bastante a despesa em investimento no público e, dessa forma, conseguiu obter estes resultados”, destaca Susana Peralta, que traz algumas sugestões na manga às decisões de Costa e de Medina.
“Se calhar o Governo podia ter baixado os impostos e não baixou. E podia ter feito, desde logo, mais investimento público e não fez. Podia ter feito o necessário para não estarmos no caos em que estamos no Serviço Nacional de Saúde ou com a falta de professores ou com os problemas estruturais com que estamos no país, ou com o aeroporto que ainda não está construído”, considera a professora de Economia.
Mas Susana Peralta também vê aspetos positivos desta decisão, cujos efeitos remete para um horizonte possível. “Portugal já não está na lista dos países mais devedores”, refere a economista, explicando que “estamos agora muito mais protegidos do risco”.
E qual é o risco? “A pandemia foi um dos momentos mais críticos da economia. Faz todo o sentido ter aumentado muito a dívida durante a pandemia. E mais, Portugal foi um dos países que foi talvez mais conservador a gastar para fazer face àquele período de exceção, precisamente porque tinha uma dívida pública elevada. Porque houve outros países que tiveram défices de 19% do PIB. Que foram muito mais generosos, precisamente porque não tinham o fardo que nós tínhamos”, exemplifica Susana Peralta. Mas o que está em causa, é que “agora estamos mais protegidos face ao risco, a pandemia é um ótimo exemplo disso. Os países que tinham menos problemas nas contas públicas puderam ser muito mais consequentes na forma como aliviaram as famílias e as empresas. O Governo fez o que tinha a fazer e provavelmente até devia ter feito mais. Ou seja, eu não veria com maus olhos que agora não estivéssemos nesta trajetória tão acelerada para baixar dos 100% se tivéssemos sido mais generosos naquela altura”, conclui.
vitor.cordeiro@dn.pt
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