Uma exposição para desmontar os mitos que sustentaram o império português em África
31-10-2024
Christiana Martins
texto
Nuno Botelho
fotografia
O Museu de Etnologia, em Lisboa, concentrou todo o orçamento deste ano na exposição “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário”, forte aposta para revelar o que está por trás dos mitos que sustentaram o império português em África. A historiadora Isabel Castro Henriques convocou 30 especialistas para escrutinar as narrativas e sabe que vai despertar polémica
Roland Barthes afirmava em “Mitologias” (1957) que “o mito é uma fala”. Sobre este raciocínio muitas interpretações de Ciências Sociais se construíram. Sobretudo quando o autor francês acrescentou na mesma obra que “o mito é um sistema de comunicação, uma mensagem”, “é um modo de significação, uma forma”. No Museu Nacional de Etnologia (MNE), em Lisboa, esta tese ganhou corpo na exposição “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário”. Aí, a mensagem e a forma dos mitos do colonialismo português em África saltam à vista de todos, para concordar e discordar. Mas isto é um debate que ficará para depois das visitas.
DESCONSTRUIR O COLONIALISMO, DESCOLONIZAR O IMAGINÁRIO Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, até 2 de novembro de 2025
Organizada pelo Centro de Estudos Sobre África e Desenvolvimento (CESA/ISEG-Universidade de Lisboa) e pelo Museu Nacional de Etnologia (MNE), a exposição resultou da iniciativa da historiadora Isabel Castro Henriques, uma das principais estudiosas do colonialismo português, que tomou em mãos o desafio de desnudar a estrutura que sustentou a presença portuguesa em África nos séculos XIX e XX. Para cumprir este objetivo, Castro Henriques propõe-se “descolonizar os imaginários portugueses e contribuir, de forma pedagógica e acessível, para uma renovação do conhecimento sobre a questão colonial portuguesa”. Uma meta arrojada a que a historiadora se entregou por completo e, passados quase dois anos do início do trabalho, diz recear apenas ter sido demasiado ambiciosa.
“Tinham começado a ser preparadas as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e eu disse a um pequeno grupo de investigadores que me parecia fundamental que se fizesse um grande evento sobre o colonialismo português, que é justamente um dos pilares do 25 de Abril. Nessa altura não havia nada sobre esta temática, o que me pareceu uma lacuna incrível. Propus então uma exposição sobre um tema que até recentemente estava silenciado”, conta a historiadora. Essencial, desde o início, explica, era que “o foco estivesse nos mitos indispensáveis para a justificação da dominação colonial”. Foi quando começaram as dificuldades. “Era necessário encontrar um espaço compatível com a exposição e financiamento para a concretizar. Tentei o Museu da Ciência Natural, falei com o Museu de Lisboa e vim à Etnologia e, um mês depois do meu contacto, o diretor Paulo Costa disse que desviava toda a verba do museu em 2024 para este projeto. E assim foi”, partilha Castro Henriques, reconhecendo que a exposição vai permitir também “promover uma renovação museológica da instituição”. O projeto foi crescendo, sempre à volta da ideia da apresentação de grandes painéis, articulando texto e imagens, sobre as principais questões do fenómeno colonial. Assim, a exposição está organizada sobre a apresentação de sete temas, designados pelos mitos que lhes estão associados e que são desconstruídos em 29 painéis de pano com três metros de altura.
O primeiro mito mostra a África do século XIX e parte da ideia de que “estamos [os portugueses] em África há 500 anos”. Para desmontar esta afirmação serão mostradas imagens que provam que, quando os portugueses lá chegaram, encontraram autoridades locais e uma estrutura política e não um vazio. “Mostrámos África como ela era, independente, feita de estruturas políticas, comércio e populações, que mantinham relações com os portugueses na costa”, explica Isabel Castro Henriques. Seguem-se as “campanhas de conquista e pacificação” e como a populações locais resistiram a estas
“Sei que vão criticar, mas não me incomodo. Durante muito tempo, os aspetos negativos do colonialismo foram silenciados, mas também fazem parte da história”
Isabel Castro Henriques Curadora
ofensivas. “Se [África] fosse dos portugueses, estes não tinham de pacificar nada”, atira a historiadora. Estão ainda presentes as explorações científicas, que deram a conhecer o interior e as riquezas dos territórios, “essenciais para organizar as rotas de ocupação”, assim como o “Mapa Cor de Rosa” e a Conferência de Berlim. Não são esquecidas ainda as “missões civilizadoras”, a “missão histórica”, a relação entre “os selvagens e os civilizadores” ou o “nós e os outros”, a “África portuguesa”, “a grandeza da nação e a luta armada” e, finalmente, os “patrimónios e racismos”.
Com 78 anos, Isabel Castro Henriques é, juntamente com Fernando Rosas, a mais velha do grupo de 30 investigadores que colaboraram para conceber a exposição. Responsável pela introdução dos estudos de História de África em 1974, a académica nunca parou de produzir investigação histórica sobre a região e sobre os africanos. E, desta vez, para desmistificar o imaginário nacional, Castro Henriques diz ter procurado reunir “quase todos os que estudam o tema”, como o diretor da Biblioteca Nacional, Diogo Ramada Curto, Margarida Calafate Ribeiro, investigadora-coordenadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Rosa Cruz e Silva, ex-ministra da Cultura de Angola ou Victor Barros, investigador do Instituto de História Contemporânea.
Exposição desdobrada
A exposição não se resume, contudo, aos painéis e apresenta também uma seleção de objetos de arte africana do MNE – escolhidas individualmente por Castro Henriques, a quem coube ainda fazer as legendas alargadas -, que visam evidenciar o que a historiadora considera ser “a força política e criativa das culturas africanas, que contradizem as narrativas depreciativas europeias relativas à África”. “A arte africana é riquíssima, extraordinariamente criativa e racional e particularmente simbólica e funcional, porque os artistas africanos, para todos os aspetos da vida social, fazem objetos do quotidiano com uma importante carga simbólica”, ensina a historiadora, dando com exemplo as tampas de panelas com esculturas e as mensagens que lhe estão associadas. “Estes objetos mostram a capacidade cultural dos africanos, desmontando o mito de que os negros são brutos, segundo a linguagem depreciativa utilizada pelos brancos”, completa. Questionada sobre se na pesquisa para selecionar as obras encontrou objetos problemáticos e passíveis de restituição aos países de origem, Castro Henriques disse que nada lhe foi negado pela direção do museu por poder estar associado a uma obtenção indevida. O corpo expositivo fica completo com as obras de arte africana contemporânea dos artistas Lívio de Morais, Hilaire Balu Kuyangiko e Mónica de Miranda. Mas tanto material é a maior preocupação da organizadora da mostra. “Tenho algum medo de que a sala fique muito cheia, mas eu queria colocar o colonialismo todo, porque considero que faltava uma visão global. Esta é uma exposição que terá de ser vista várias vezes”, conclui Isabel Castro Henriques, que considera ser este evento um corolário dos seus mais de 50 anos de trabalho na área. “Sei que vão criticar, mas não me incomodo. Estou habituada. Houve aspetos positivos e negativos no colonialismo português. Durante muito tempo, os aspetos negativos foram silenciados, mas é necessário abordá-los porque também estes fazem parte da história.”
O MNE foi criado em 1965, como se explica na página eletrónica da própria instituição, “com o ambicioso programa de representar as culturas dos povos do globo, não se restringindo, pois, nem a Portugal nem aos domínios ultramarinos sob a sua administração”. Ou seja, um museu onde coubesse o mundo, que lá está representado através de mais de 42 mil bens inventariados, objetos etnográficos provenientes de 80 países, incluindo as ex-colónias. Indissociável da história da antropologia portuguesa, encontra no edifício atual – inaugurado em 1976 – o corpo do programa concebido pelo antropólogo Jorge Dias e os seus colaboradores, em que se destacam dois pilares fundamentais: “A ausência de exposição permanente, privilegiando as exposições temporárias que permitem problematizar, aprofundar o conhecimento e divulgar junto do público coleções e temas específicos; e a organização de reservas de modo a facultar o seu acesso aos investigadores e uma perceção visual da totalidade do seu acervo.” A ausência de uma equipa estável e de um orçamento capaz de concretizar esta ambição levou o MNE a uma situação de quase esquecimento, sendo considerado mesmo o museu nacional com o menor número de visitantes.
Caberá à nova exposição contribuir para recuperar a centralidade de uma casa de grande relevância no panorama dos museus públicos, dada a importância do seu acervo, já por mais de uma vez sublinhado pela ministra da Cultura. Um dos propósitos por que Isabel Castro Henriques se bateu foi, contudo, que a exposição saísse para lá das portas do MNE, estando por isso prevista a realização de mostras itinerantes, que circularão por escolas e centros culturais em Portugal e em outros espaços de língua portuguesa, como o Brasil e África. A exposição será complementada ainda com um ciclo de conversas intitulado “Desconstruir o Racismo, Descolonizar o Museu, Repensar o Saber”, onde serão debatidos temas atuais como a historiografia africana, as reparações históricas, as independências africanas e o racismo em Portugal. E ainda, em parceria com o CESA/ISEG-UL, o ciclo “Cinema e Descolonização”, com filmes sobre a realidade pós-colonial, no ISEG e no MNE. Da iniciativa resulta também um catálogo bilíngue de 360 páginas, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e traduzido pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
Talvez uma das mais importantes afirmações de Barthes no texto que conclui “Mitologias” seja justamente quando o autor afirma que “o mito transforma a história em natureza”, explicando que “é por isso que o mito é vivido como uma fala inocente: não porque as suas intenções estejam ocultas – se estivessem ocultas não poderiam ser eficazes -, mas porque estão naturalizadas”. Até novembro de 2025, naquele edifício, os mitos do império português estarão pendurados no teto da sala expositora do primeiro andar do Museu Nacional de Etnologia e, de acordo com a proposta da curadora, serão esvaziados da ideologia oficial. Desnaturalizados, talvez dissesse Barthes.